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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

NO CAFÉ



Está tão diferente o Samambaia…
Há muito que não ia àquele café de que guardo tantas e tão boas recordações. Está mais moderno, é certo, mas demasiadamente asséptico e arrumado para o meu gosto.
Os tampos das mesas são espelhadas, de um negro baço, fazem lembrar um écran de computador, as cadeiras são confortáveis e deslizam automaticamente quando alguém faz menção de se sentar.
Olho em redor enquanto espero que venha o empregado. Não está muita gente. Uma pessoa aqui outra acolá, mas todos com um ar sorumbático, triste, com os olhos fixos nas mesas. Usam vestuários estranhos. Pouco diferem uns dos outros, mas têm em comum uma certa uniformidade nas cores, de um cinzento prateado. Deve ser a moda que eu tenho descurado. Continuo a ser um conservador inveterado no que respeita à forma de me vestir.
Reparo que todos têm apenas um copo de água em cima da mesa. Nem pratos, nem chávenas, mais nada!
E as velhas árvores que davam sombra à esplanada? Desapareceram! Fizeram mal em as terem arrancado. Ou terão morrido?…
A bonita jovem que estava sentada ao lado olhou-me de soslaio, disfarçadamente e cravou de novo os olhos na sua mesa, com o rosto entre as mãos, apoiada nos cotovelos.
Nem um sorriso!
E nunca mais aparecia o empregado.
Corri o olhar à sua procura. Nada! Fiz sinal ao único que via, lá dentro, atrás do balcão. Parecia uma esfinge. Não deu mostras de me ter visto acenar-lhe.
Ouvi a voz da jovem sussurrar-me, sem me olhar:
- Se quer encomendar alguma coisa, escolha no menu e peça…
- Qual menu?
- Aí, no tampo da mesa, corra o cardápio com o dedo e clique naquilo que quiser pedir. Depois tecle <Enter>
Que modernices, pensei eu. Percebi então que a própria mesa era um computador e lá escolhi o que me apetecia. Posicionei o dedo em cima de “tosta mista + imperial”, e dei <Enter>. Ficou a piscar uns segundos e apareceu uma mensagem a pedir-me o número do cartão de crédito.
Puxei da carteira, escrevi o número e aguardei.
Pouco depois apareceu o tal empregado esfingico, com um andar desengonçado. Trazia no tabuleiro um copo de água e um pequeno pires com um comprimido. Ao lado, um talão com os dizeres “Tosta mista e imperial” e a indicação das vitaminas, sais, lípidos e demais caracteristicas do produto contido naquela pastilha amarelada.
Já estou arrependido de me ter metido na máquina do tempo e feito o teletransporte para o Futuro. Para o ano de 2095...
 
 
Rui Felicio

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

AMOR E ROSAS

As pontas dos lençóis arrastavam pelo chão em desalinho, a fronha da almofada ao seu lado ainda continha a concavidade da cabeça do Paulo. E até o seu cheiro suave, característico.
Fitando o tecto, saciada e feliz, ela sentia ainda, no lençol debaixo da sua perna dobrada, a humidade e o calor dos suores dos corpos.
A Beatriz era uma mulher madura, mas os anos não lhe tinham destruído a beleza e a fogosidade. Sentia-se ainda suficientemente atractiva aos olhos dos homens. Mesmo quando tinham menos vinte anos do que ela, como era o caso do Paulo.
Ele já tinha saído há umas duas horas, mas ela mantinha-se deitada. Não lhe apetecia sair da cama, queria prolongar o prazer daquela madrugada de sonho, reviver tudo, semicerrar os olhos e visualizar por entre a névoa da fantasia o seu rosto atraente, o seu corpo viril, o seu abraço carinhoso.
De súbito, a campainha tocou.
Esperou que a enteada fosse abrir.
Mas pouco depois a campainha retiniu com mais insistência. Ninguém fora abrir a porta.
A Natália já deve ter saído, pensou a Beatriz.
Contrariada, despertou da letargia em que se encontrava, enfiou à pressa a camisa de noite e estugou o passo até à porta.
Abriu, perscrutou com o olhar para um lado e para o outro, mas já não estava lá ninguém.
Já ia fechar a porta quando reparou, no chão, ao lado, um belo ramo de rosas com um cartão.
Sentiu o coração bater desordenadamente, cheia de felicidade, pela delicadeza do Paulo ao oferecer-lhe, em sinal de amor, aquele magnifico ramo de flores.
Pegou no cartão perfumado que as acompanhava e leu:
“Para a Natália, grande amor da minha vida, com mil beijos do Paulo.”


quinta-feira, 15 de setembro de 2011

O COMETA

O Eduardo, empregado do Banco Pinto e Sotto Mayor, era um marido exemplar, respeitador da Beatriz com quem tinha casado na Igreja de Santa Cruz, há uns cinco anos. Amava-a, satisfazia-lhe todos os caprichos, não se passava uma semana em que não aparecesse  com um ramo de flores para lhe oferecer. Viviam num apartamento na Solum, que compraram com empréstimo do Banco onde ele trabalhava. Mas o Eduardo ainda não lhe tinha dado o filho que ela tanto desejava. A Beatriz vivia triste, desiludida, infeliz. Refugiava-se na lida da casa, não tinha amigas. Passava noites em claro, sozinha na cama, enquanto o Eduardo deambulava pelo Penedo da Saudade e pelo Choupal, de pescoço esticado a olhar para as estrelas e a tomar apontamentos.
O Eduardo, nascido na aldeia, nunca se habituara à cidade. Aliás, detestava viver em Coimbra. Era um apaixonado pela astronomia, passava noites em branco a olhar as estrelas, devorava livros e enciclopédias que falassem de fenómenos celestes, de planetas, de galáxias...
Um dia decidiu vender o apartamento, pedir um novo empréstimo ao Banco e comprar um terreno com uma pequena e velha casa em S. João do Campo. Convenceu a Beatriz a mudarem-se para lá. Cumpriria assim o sonho de viver longe da poluição luminosa da cidade que não o deixava observar os astros. A Beatriz poderia ocupar o tempo, dedicando-se ao cultivo do pequeno terreno, plantando tomates, pepinos e toda a sorte de legumes que ajudariam a equilibrar o orçamento caseiro.
Ao principio, a Beatriz ainda mais infeliz andava, mas aos poucos começou a sorrir, as cores avivavam-lhe o rosto, trabalhava na horta desde o nascer do sol até à noite. O Herculano, que amanhava uma terreno do pai perto da aldeia, era ainda primo afastado do Eduardo, e ajudava-a, ensinava-lhe os segredos da agricultura.
Naquele ano de 1986, chegou o grande dia e o Eduardo andava eufórico! O cometa Halley ia passar perto da Terra. Antes de jantar avisou a Beatriz que ia passar a noite em Verride, junto ao Mondego para ver o cometa. Ia levar o telescópio e observar a aproximação do cometa, que seria visto no seu auge por volta das cinco da manhã.
A Beatriz simulou pena, encolheu os ombros e disse-lhe para ele ir descansado, que não se preocupasse. Porque ela o que queria era vê-lo feliz.
O Eduardo agradeceu, aproximou-se para lhe dar um beijo de despedida a que ela, no ultimo instante, correspondeu com um leve toque dos lábios no seu rosto.
Passada uma hora bateu á porta o Herculano. Entrou, e perguntou à Beatriz:
- Queres ver o cometa?
- Não! Quero é ver, agarrar e sentir o teu telescópico explorando as profundezas do meu universo...
Um ano depois, o Eduardo, a Beatriz são um casal feliz, na companhia do tão esperado filho nascido há pouco mais de dois meses.
É o Pedrito, lindo rapaz que, diz-se na aldeia, é a cara chapada do seu primo afastado...

terça-feira, 13 de setembro de 2011

SOU UM VENCEDOR

A competição, já de si, gera conflitos, inimizades. Muito mais quando o objectivo que se quer atingir é rigorosamente o mesmo.
Algo me martelava o cérebro, me impunha a obrigação irresistível de ser eu o primeiro, o único, o vencedor.
O meu objectivo era conquistar o alvo, atingi-lo em primeiro lugar, porque só assim satisfaria a desejo de duas pessoas que me eram muito queridas. De outro modo, a minha existência não tinha significado.
Tinha contra mim milhões de competidores que outra coisa não queriam senão atingir o mesmo objectivo que eu. Serem os primeiros...
Corri desenfreadamente, sem me atrever a olhar para trás. Sentia o ruído da correria dos meus competidores atrás de mim. Estava ofegante mas ao mesmo tempo contente, porque não via nenhum dos meus rivais à minha frente. Isso deu-me novas forças, novo ânimo e impulsionei ainda com mais força e velocidade a minha correria.
Subitamente, esbarrei violentamente contra uma parede. Quase desmaiei, deixei de sentir as pernas ou o que restava delas. Com a violência da pancada, furei a grossa parede e deslizei para o lado de lá, mergulhando numa massa viscosa que me atordoou e me acalmou.
Andei de mão em mão, toda a gente me acarinhava, todos queriam tocar-me nos lugares mais recônditos do meu corpo, quando nove meses depois me deixaram ver a luz do dia. Foi então que soube que aquele ser era eu, o espermatozóide que vencera a corrida.
Rui Felicio

quarta-feira, 27 de julho de 2011

A PROVA

Miguel Azevedo, produtor e grande conhecedor de vinhos, entrou naquele requintado restaurante de Lisboa, foi acompanhado à mesa pelo Chef de Sala, leu a carta e encomendou um tornedó mal passado, guarnecido com legumes salteados e esparregado. Pediu um Pegos Claros, reserva tinto, colheita de 1982.
Instantes depois, o escanção dirigiu-se à mesa com o vinho já depositado num decantador. Com extremo cuidado e aparato profissional, verteu uma pequena quantidade no copo e esperou que o cliente o provasse.
O Miguel Azevedo agitou o copo em lentos movimentos elípticos, chegou-o aos lábios, saboreou, quase mastigou o néctar, repetiu mais umas duas vezes o cerimonial, chegou o copo ao nariz, aspirou o aroma vínico, fitou o empregado e sentenciou:
- Este vinho é de facto de 1982, mas não é Pegos Claros!
O escanção ganhou coragem e atreveu-se a contradizer o cliente. Que sim, que era realmente um reserva tinto Pegos Claros de 1982.
Que não, insistia o Miguel Azevedo, com ar contrariado. O Chef aproximou-se e polidamente garantiu que realmente aquele vinho era Pegos Claros.
- Sabe, meu caro? Quem produziu este vinho fui eu e asseguro-lhe que não é Pegos Claros. É Pegões!, sentenciou o Miguel Azevedo…
O escanção interveio:
- Perdoe-me V. Exª, eu conheço bem a região onde se produzem estes vinhos. Pegões e Pegos Claros são duas vinhas de iguais castas, situadas a não mais do que 500 metros uma da outra, tratadas da mesma maneira, as uvas são colhidas, preparadas e pisadas na mesma Adega, segundo os mesmos métodos. Como pode V.Exª ter tanta certeza de que este vinho não é Pegos Claros. Na verdade, tudo indica que ambos sejam exactamente iguais.
- Mas não são!, disse o Miguel Azevedo.
E, em voz sussurrada, aconselhou o escanção:
- Faça a seguinte experiência: quando chegar a casa peça à sua namorada que se dispa completamente. Aprecie os orifícios mais próximos do seu corpo. Cheire-os, deguste-os e compreenderá que, apesar da proximidade geográfica, têm aromas e sabores diferentes e completamente distintos…

terça-feira, 19 de julho de 2011

O LIVRO


Vestiu o seu melhor vestido que deixava adivinhar todos os contornos do seu corpo, perfumou-se, pegou no embrulho de papel de seda com um laço dourado e dirigiu-se a casa do Filipe. Tinham combinado jantar em casa dele só os dois. Era o dia do seu aniversário...
Tocou a campainha e quando o Filipe abriu, beijou-o , deu-lhe os parabéns e entregou-lhe o embrulho, dizendo que não conhecia o autor mas que era um romance que a empregada da livraria lhe tinha recomendado.
O Filipe agradeceu a prenda, rasgou o papel do embrulho e, atónito, só ao fim de uns minutos conseguiu articular algumas palavras, eufórico:
- Onde descobriste este livro? Há meses que tento encontrá-lo. Já corri dezenas de alfarrabistas e nunca o consegui ver. Obrigado!
Ela via a felicidade que lhe transparecia do olhar, da boca entreaberta, dos gestos, da maneira sensual como os seus dedos acariciavam a capa e folheavam sôfregas e ao acaso as páginas.
Como ela desejava naquele momento ser tocada pelas suas mãos da mesma forma que ele acariciava embevecido aquele livro!
Mas o Filipe era um viciado na leitura. Depois de jantarem, sentaram-se no sofá da sala mas ela sentia que a atenção dele estava dedicada exclusivamente àquele livro. Ela sabia que só depois de ter devorado aquelas quatrocentas páginas é que o Filipe lhe dedicaria alguma atenção.
Ficou a observá-lo, paciente, excitando-se em silêncio com os suspiros e os gemidos que por vezes ele deixava escapar a cada virar de folha.
Por volta das quatro da madrugada o Filipe finalmente concluiu a leitura, recostou-se no sofá, estendeu-lhe os braços e ela anichou-se no seu colo.
Despiram-se. Ela sabia que depois da excitação da leitura não podia perder tempo com preliminares. O Filipe estava prestes a atingir o orgasmo.
Ela seria o epílogo daquele livro...

quinta-feira, 14 de julho de 2011

MILAGRE

Os meus avós paternos tinham a sua casa num pequeno terreno que se estendia ao longo da linha de comboio da Lousã, uns 50 metros adiante do apeadeiro do Calhabé.
Nele cultivavam produtos hortícolas que a minha avó depois vendia diariamente no Mercado D. Pedro V. Como o terreno era atravessado por um regato que o humedecia, resolveram plantar uma pequena leira de melancias, para experimentar.
O resultado foi melhor do que tinham imaginado. Toda a gente que por lá passava elogiava os belos frutos rasteiros que ali iam crescendo. Chegavam a sentir crescer água na boca só de os mirar. As melancias nascidas eram de grandes dimensões e, dizia quem as provava, eram saborosíssimas e muito sumarentas.
Até o Padre Aníbal se deixou seduzir pelos espécimes. Uma tarde de sábado, acompanhado pelo sacristão, dirigiu-se ao terreno, bateu várias vezes à porta da casa mas ninguém os atendeu. Ele não sabia que nesse fim de semana os meus avós tinham ido a Lisboa visitar o meu tio Fausto e o meu pai que, na altura, ali viviam.
Como estava determinado a levar uma melancia para se deleitar na sua casa com uma ou duas fatias e um naco de presunto, disse ao sacristão para ir colher uma para levarem. O “marreco” revirou os olhos incrédulo:
- Oh Sr. Prior, não me diga que vai roubar uma melancia!
- Não sou nenhum ladrão, sossegou-o o Padre Anibal. Além de que roubar é um pecado grave que eu jamais me atreveria a cometer. Meteu a mão na sotaina, retirou de lá uma moeda e disse ao sacristão para a deixar junto ao pé da melancia que ele cortasse.
Na missa dominical da semana seguinte, o tema da homilia era a honestidade e o Prior, iniciou-a  dizendo que ia contar aos paroquianos um milagre ocorrido na semana anterior na horta do Sr. Felício. Um anjo foi lá, dizia ele, levou uma melancia e deixou no sítio de onde a arrancou uma moeda para a pagar. Ao lado, o sacristão olhava-o de esguelha mas não se atreveu a contradizer o padre. Pelo contrário, até acenava afirmativamente com a cabeça, corroborando a história.
Cá fora, no fim da missa, no átrio da igreja, a minha avó Piedade viu-se rodeada por um grupo de mulheres que a felicitava pelo milagre divino acontecido no seu terreno, e disse-lhes:
- Os anjos estão desactualizados quanto ao preço das coisas. Aquela moeda miserável que lá deixaram não dá para pagar nem uma alface. Quanto mais para uma melancia de mais de cinco quilos!

Rui Felício

quarta-feira, 13 de julho de 2011

NO QUARTO ANDAR EM FRENTE

Por essa altura, uma bela quarentona de cabelos pretos de azeviche, veio morar no quarto andar do prédio defronte da minha casa.
Os meus vinte e seis anos, ainda solteiros e viçosos, despertaram ao vê-la à janela, a um sábado de manhã, a sacudir o pó de um tapete, o busto firme e redondo a dançar dentro da blusa preta e justa.
À noite regressava a casa cedo e quedava-me invariavelmente na varanda da sala, fumava cigarros atrás de cigarros a olhar o vai vem do perfil elegante e de formas generosas da minha nova vizinha a cirandar na cozinha com a luz acesa.
Noite após noite, depois de ela apagar a luz, acabava por me estender na cama, com os olhos fixos no tecto sem o ver, a imaginar o que estaria ela a fazer naquele momento.
Construía as mais mirabolantes imagens, adivinhava-a no quarto, deitada de lado, o braço roliço dobrado sob o peito, o respirar cadenciado de um sono calmo, retemperador das lides diárias. E o desejo de estar com ela inundava-me a mente e o corpo...
Fazia planos para, no dia seguinte, ir bater-lhe à porta para lhe dizer que estava apaixonado por ela. Mas logo os abandonava, receoso da reacção que ela pudesse ter.
Não! Tinha que encontrar uma forma menos intempestiva, de proporcionar um encontro ocasional com ela, mas para isso tinha que descobrir quando é que saía de casa, para ir trabalhar ou para ir às compras.
Embora mais velha do que eu, era o género de mulher que me atraía. Cheia, robusta, sólida e, sobretudo, morena de cabelos negros.
Eu perdia-me por mulheres de cabelos pretos! Fazia parte dos meus genes!
No sábado seguinte de manhã, acordei cedo e lá fui, como de costume, para a varanda, na expectativa de a ver sair e tentar um encontro casual.
Passado um bocado, a janela do quarto andar abriu-se e por entre as portadas, vejo sair um tapete oscilando no vazio preso pelas mãos da minha vizinha que o sacudiam vigorosamente.
O corpo dela debruçou-se, pela primeira vez olhou para mim e sorriu-me. O meu coração disparou em incontroláveis e fortes batidas, acenei-lhe de leve com a mão com um leve sorriso, e só então reparei que os seus cabelos estavam louros. Talvez por causa do meu ar espantado, disse-me a rir que tinha pintado o cabelo!
Mandei os genes às malvas e reconfigurei os meus gostos! A partir daquela visão, passei a ser um perdido, um louco por mulheres louras...
Rui Felício

quarta-feira, 6 de julho de 2011

REGRESSO

Estava destacado com o meu pelotão em Samba Cumbera, pequena tabanca perdida no mato.
Há dois dias que chovia torrencialmente, sob um céu plúmbeo, abafado, abrasador. Um rio de lama saltitava pelos degraus de terra batida de acesso ao abrigo subterrâneo, coberto com grossos troncos de palmeira, com terra e com chapas de zinco. Lá dentro, precocemente enterrado, eu jazia exausto, fraco, cheio de febre, estendido no colchão de espuma empapado em suor. Em volta da cama de ferro, no lamaçal castanho de uns 10 centímetros formado pela água que entrava no abrigo, boiavam pequenos objectos, uma bota, um cinto, umas chinelas de plástico.
O médico estava na sede do Batalhão a muitos quilómetros de distância e, com a picada intransitável, tornava-se impossível deslocar-me até ele.
Desde anteontem que não comia nada. O estômago não aguentava qualquer bocado de comida, nem sequer a água que de vez em quando eu tentava beber para matar a sede intensa que me secava, expulsando-a em prolongados vómitos. Era a segunda vez em pouco tempo que era acometido por um fortíssimo ataque de paludismo.
O Samba, chefe da tabanca, e a sua jovem e bonita filha Fatwma, assomaram à entrada do abrigo, e ele chamou-me no seu português arrevesado:
- Alfero! Pudi entra? Bo stá milhor?
Resmunguei que estava pior, mas que sim, que podia entrar,  e ele curvou-se, desceu para o abrigo, chapinhou no lamaçal e, com um molho de ervas na mão, disse-me:
- Tem mezinho manga di bom, qui bai cura alfero!
A Fatwma começou a esfregar as ervas que o pai lhe dava, na minha testa, nos lábios, no pescoço e no peito, formando com o suor, uma pasta esverdeada à medida que as ia esmagando. Ardia um pouco, mas nada que não se suportasse.
Senti-me psicologicamente melhor. Principalmente porque alguém se preocupava comigo.
Com alguém que era um intruso em terra alheia!
No dia seguinte, amainado o temporal, cambaleante, trôpego, consegui enfiar-me no Unimog com meia dúzia de soldados. Vencemos os obstáculos da picada numa viagem lenta e atribulada e chegámos horas depois a Bafatá, onde o médico me deu duas injecções que me aliviaram o mal.
Passados 42 anos, por sinuosos carreiros que a mata invadira há muito e por onde o jeep abria caminho com dificuldade, afastando à sua frente os intrincados ramos da floresta, voltei ontem a Samba Cumbera. Disseram-me que o Samba já morreu há muitas luas. A Fatwma, abriu um largo sorriso ao reconhecer-me e correu a ir buscar uma cabaça com água fresca. Pareceu-me ver lágrimas nos olhos dela e senti-as também nos meus.
Está velhota a Fatwma, mas ainda é uma mulher muito bonita...

NOTA DE RODAPÉ:
Tento resumir as características da doença, na minha ignorância médica, sujeita às correcções dos especialistas na matéria, aquilo que nos era ensinado nos manuais militares:
A malária é uma doença potencialmente mortal se não for atacada a tempo.  Durante muito tempo supunha-se que a sua causa provinha directamente da proximidade de terrenos pantanosos fétidos e daí o seu nome originário de “mau ar” que redundou em malária. Descobriu-se que, afinal, a causa estava numa bactéria injectada no nosso sangue pela picadela do mosquito “anofelis” que a transporta consigo. O que explica a relação entre esse insecto e o seu habitat perto dos pântanos. Este mosquito alimenta-se exclusivamente do sangue dos mamíferos, razão da sua ferocidade e persistência, ditadas pela sua própria sobrevivência.
A bactéria, acomodada no circuito sanguíneo humano, imune às defesas do organismo, desenvolve-se, destrói paulatinamente os glóbulos vermelhos, ataca o fígado e vai enfraquecendo as resistências, provocando sintomas que na fase inicial da doença se assemelham a uma gripe forte, degenerando em febres altíssimas, vómitos, debilitação geral e prostração física e psicológica.
Na Guiné chamam-lhe paludismo, que deve ser prevenido, com tomas regulares semanais de comprimidos ou injecções de medicamentos elaborados à base de quinino.

Rui Felício - 29/06/2011

quarta-feira, 22 de junho de 2011

VINDICTA

Gostei dela desde que a conheci, há já tantos anos!
Foi ao longo da vida a minha inseparável companheira, a minha confidente. Conhece todos os meus segredos, os meus anseios, os meus projectos, sempre disponível para me ajudar na resolução dos mais intrincados problemas. Sem um queixume, sem um reparo...
Partilhei com ela os momentos de felicidade que a vida me proporcionou e nunca me regateou todo o apoio nos momentos menos bons.
Sem que outros nisso reparassem, passei horas infindas a deslizar os meus dedos no seu corpo elegante que, em resposta e às ocultas, se aconchegava a mim tornando-nos num só ser, num destino comum. Mesmo quando alguma contrariedade se apoderava de mim, nunca descarreguei nela a minha raiva. Pelo contrário!
Todavia, nunca deixámos transparecer a intimidade que nos ligava! Foi uma relação espúria, que sempre procurámos esconder. Protegemos ferreamente, dos olhos dos outros, a nossa privacidade, o nosso segredo. Todos achavam que a proximidade e o conluio, não ultrapassavam os limites da simples relação profissional.
Contudo, era bem mais do que isso.
Se, no escritório, ela pautava os seus comportamentos por uma exclusiva e eficiente execução do trabalho, quando nos encontrávamos a sós, em minha casa, em inesquecíveis e longas noites de intimidade e de sonho, os assuntos de trabalho eram relegados para segundo plano e discorríamos sobre o amor, sobre a vida, sobre o passado, sobre as perspectivas de futuro...  
Mas tudo tem um fim.
Farta da obscuridade a que a submeti durante anos, cansada de ser a parda sombra de um oculto desejo do protagonismo que, injustamente, nunca lhe concedi, ela decidiu vingar-se e o inesperado aconteceu.
Ao outorgar um importante contrato, numa cerimónia formal de grande solenidade e na presença de respeitadas figuras de topo que o testemunhavam, a minha fiel e antiga caneta de tinta permanente deixou cair propositadamente um grosso jacto de tinta azul que se espalhou por cima da página final do contrato, esborratando a assinatura que eu acabara de fazer.
Rui Felício

sexta-feira, 8 de abril de 2011

NO TRIBUNAL

O pleito consistia num pedido apresentado pela Silvia Gomes ao Francisco Dias de uma indemnização por ofensa ao seu bom nome, quando este a abordou em plena via pública, fazendo-lhe, alto e bom som, um insistente convite para irem ambos passar a tarde num hotel da linha do Estoril.
A D. Gertrudes, mulher muito ligada à Igreja, solteirona e cumpridora dos deveres religiosos, era conhecida como senhora púdica, casta, puritana. Foi testemunhar ao Tribunal por parte do demandado Francisco Dias. Ia abonar o seu comportamento respeitador, habitualmente educado e incapaz de ofender fosse quem fosse.
O Juiz, antes de a mandar sentar, perguntou-lhe o nome, se tinha alguma relação de parentesco ou outra com o Sr. Francisco Dias e se jurava dizer a verdade, só a verdade e nada mais do que a verdade.
A testemunha jurou dizer a verdade e o Juiz antes de a mandar sentar esclareceu que ela tinha sido arrolada pelo réu, informando-a que deveria responder com verdade às perguntas que os Srs. advogados lhe iriam fazer.
- Arrolada eu?!, vociferou a D. Gertrudes, indignada...
- Olhe Sr. Dr. Juiz, com a idade que tenho, só fui arrolada duas vezes, que sou pessoa séria e decente, já há muitos anos, e em nenhuma delas o fui pelo Sr. Francisco!
E, apontando o dedo à Silvia:
- Quem é arrolada quase todos os dias é ali aquela, por qualquer um que lhe apareça. Toda a gente sabe disso lá no bairro. Ela arma-se em séria, mas toda a gente sabe que é uma maluca que dá a volta à cabeça dos homens, deixando-se arrolar por novos, velhos, casados, solteiros.. O que vier...
Rui Felicio

quinta-feira, 7 de abril de 2011

CURA MILAGROSA


As pequenas melhoras, quase imperceptíveis, que se notavam passados dois meses, estavam longe de terem resolvido o problema. Farta de gastar dinheiro em pomadas, sem resultados palpáveis, ainda com a cara cheia de borbulhas, desabafou com uma amiga que lhe disse a rir, com ar de gozo:
- Tu precisas é de arranjar um namorado! Vais ver que isso te passa em três tempos... Voltou ao dermatologista, mostrou-lhe a ineficácia dos medicamentos e, meio envergonhada, mas disposta a tudo para descobrir a cura, contou-lhe o que a amiga lhe tinha dito.


O jovem médico que, desde a primeira vez que a viu, não conseguira esquecer a beleza física daquela rapariga, apesar do problema da pele, confessou-lhe como se sentia atraído por ela e que gostava que ela o aceitasse como seu namorado.
A Inês aceitou o pedido, mais como uma derradeira panaceia para o seu mal, do que propriamente porque o médico a atraísse.
Namoraram, o acne começou visivelmente a melhorar e acabaram por casar. Nos primeiros tempos de casados, a pele da Inês estava praticamente curada! Mas voltava a piorar sempre que o marido tinha que se ausentar por alguns dias para ir ao estrangeiro a Congressos de Dermatologia.
Quando ele regressava a pele tinha voltado a encher-se de borbulhas. Que logo desapareciam depois de alguns dias de convívio conjugal. A relação causa e efeito começava a delinear-se...
Sempre assim acontecia. Melhorava quando o marido estava em casa e piorava na sua ausência!
Um dia o marido avisou-a que teria que ir a um Congresso na China, mas que desta vez iria estar ausente por quase um mês!


E, no dia da partida, olhava ela o carro dele a afastar-se na esquina da rua, em direcção ao aeroporto, foi surpreendida pelo belo filho do dono do minimercado do bairro que lhe disse:
- Olá Inês, queres provar um dióspiro? O meu pai comprou umas caixas deles que tem lá no supermercado para vender.
- São uma delícia! – disse ele estendendo-lhe um que trazia na mão...

Ela puxou-o bruscamente pelo braço, meteu o rapagão dentro de casa, fechou a porta e disse-lhe, com ar ansioso e provocador:
- Sim quero! Durante um mês, quero todos os dias um, pelo menos!


Quando o marido regressou ao fim de um mês, ficou espantado :
- Desta vez, apesar da minha longa ausência, a tua pele está impecável, sem marcas, sem borbulhas! Pareces estar curada, definitivamente!
- Pois é querido. O que me curou foram os dióspiros que diariamente tenho comido...


Rui Felício

sexta-feira, 18 de março de 2011

APARTHEID

Havia casas de banho públicas perfumadas e limpas, para uns e outras sujas e mal cheirosas, para os outros.
Nos restaurantes mais luxuosos só podiam entrar os da cor dominante. Os da outra cor só comiam em restaurantes populares.
No Metro, havia carruagens com ar condicionado destinadas aos privilegiados e, ao fundo do comboio, duas carruagens velhas, húmidas, desconfortáveis onde se apinhavam os outros, como sardinhas em lata.
Nos modernos autocarros prateados era proibida a entrada à raça dominada.
Nas deslocações pela cidade, os servos pertencentes a esta raça segregada tinham que se contentar com umas camionetas velhas, ferrugentas, a cair de podres, com os estofos rotos e onde entravam os gases dos motores antiquados e quase em fim de vida.
Os casamentos mistos eram proibidos. Desta forma se evitava a miscigenação que a classe dominante temia.
Nas praias destinadas à classe dominante, as pessoas protegiam-se dos raios solares para não adquirirem excessivamente a pigmentação de pele, característica da ralé, dos segregados.
É que, naquela atmosfera rarefeita de Marte, os raios solares azulavam e arroxeavam a bela pele verde-alface dos corpos sensuais, de atraente viscosidade, das mulheres e dos homens que dominavam o planeta.
E eles e elas não queriam ser confundidos com os seus escravos de pele ressequida e azul...

quinta-feira, 17 de março de 2011

VOYEURISMO

A Lurdes nasceu nas Torres do Mondego no seio de uma pobre família. Era a mais nova de um rancho de filhos que o Joaquim Vinagre e a mulher ia fazendo uns atrás dos outros. Do cultivo de uma pequena leira num íngreme cabouco perto do rio, o Vinagre mourejava ao sol e à chuva, no arroteio da terra, para tirar umas couves, uns feijões verdes, algumas batatas e nabos com que faziam o caldo ralo para ir enganando a fome da filharada.

Tinha a Lurdes os seus 7 anos, foi com o seu pai a casa do Senhor Teodósio, o homem rico da terra.  Quieta em cima das pernas semelhantes a dois finos caniços, coçava o cabelo encaracolado muito preto que lhe emoldurava a carita chupada de onde sobressaiam dois olhos negros assustados, como os de uma gazela que sente, próximo, o cheiro do leopardo.

Fitava o dono da Quinta do Caneiro e o seu pai, que contorcia o chapéu nas mãos nervosas e que pedia para ele a aceitar como criada na sua casa, porque já não conseguia arranjar comida para alimentar tanta gente.
Ali cresceu, sem nunca ter ido à escola, arrumando a casa, fazendo as camas, ajudando na cozinha, despejando pela manhã, na fossa, os penicos cheios que ia buscar a cada quarto.
O seu corpo, antes franzino, começou a ganhar formas, as cores animavam-lhe o rosto, a boca de carmim despertava desejos aos rapazes da terra. Aos dezasseis anos era uma bela mulher, de grandes olhos pretos, apaixonada em segredo pelo Luis, filho do patrão, que andava a estudar em Coimbra. Era um rapaz forte, musculoso, bonito, que trespassava as raparigas da aldeia com os seus olhos azuis.
Naquele domingo, a seguir aos afazeres matinais, a Lurdes preparava-se para ir à missa, como de costume, com a D. Alzira mulher do dono da Quinta.
Da gaveta da cómoda carcomida pelo caruncho, no seu acanhado quarto, a Lurdes sacou a roupa domingueira que precisava. Uma blusa bordada no peito, um saiote branco debruado a renda, uma saia plissada de xadrez. Poisou tudo em cima da cadeira. Fitou-se em frente ao espelho antes de se lavar no alguidar de esmalte onde previamente tinha despejado um jarro de água morna. Foi deixando cair a roupa lentamente sem nunca deixar de se mirar no espelho. Deslumbrante na sua nudez virginal, olhava a pele rija, amorenada, firme, voluptuosa, que vestia as carnes torneadas do seu corpo. Duas pétalas de rosa negra arrebitavam-se-lhe no peito, erécteis, simétricas, tentadoras...
Chapinhou na água morna, onde embebeu um pano grosso e passou-o, a escorrer, no rosto, nos sovacos, nos seios, com o pensamento absorto no Luis, que dormia no quarto ao lado.
Assustou-se, quando, espantada, reparou num olho azul num buraco disfarçadamente aberto ao lado do espelho, no tabique de madeira que servia de parede divisória entre os quartos.
Tapou-se à pressa e refugiou-se num canto do quarto com o coração a bater desenfreadamente. Nunca contou isto a ninguém. Fingiu que não tinha dado por nada.
A partir de então, quem estivesse no quarto do Luis, com atenção, conseguiria ver um grande olho preto a espreitar pelo mesmo buraco do tabique.

quarta-feira, 16 de março de 2011

CONFESSO...

Que bom que foi o almoço de Penacova!
Mas...
Como sempre acontece, depois de um fim de semana em Coimbra e do reencontro de tantos amigos, do convívio às refeições e no Samambaia, do desfiar de recordações da juventude à medida que, em pequenos grupos, vamos passeando pelas ruas do Bairro, chega a hora do meu inevitável regresso à Ericeira.
Pelo caminho, vou escutando música suave, olho os farolins vermelhos dos carros que seguem à minha frente na auto estrada, mas o pensamento ainda está em Coimbra e revive os bons momentos ali passados durante os dois dias anteriores.
No domingo, sentado confortavelmente ao volante, via a chuva miudinha a bater no vidro. O cadenciado oscilar dos limpa pára-brisas embalava-me, entorpecia-me, provocava-me um sono que tentava vencer fumando mais um cigarro.
Tinha pressa de chegar à Ericeira, de tomar um banho, de descansar.
A pouco e pouco, as imagens de Coimbra iam-se esbatendo, substituídas pela ânsia de chegar.
Sabia que, dentro de casa, ela me esperava, que me iria receber de braços abertos, acolhendo-me depois de dois dias de separação.
Como a desejava!
Por mais que tentasse pensar noutras coisas, a obsessão de a rever, de a ter para mim, de sentir o seu calor, aumentava, absorvia-me, numa antecipação da doce intimidade que desfrutaria junto a ela.
Vivemos juntos há mais de cinco anos, é ela que me faz feliz, que me retempera as forças quando entro em casa depois de cada esgotante dia trabalho, fundindo-nos ambos num só ser indistinguível.
Já me imaginava à chegada, a ir tomar um banho quente, relaxante e depois, a aconchegar-me na maciez dos seus braços, a acariciá-la, a estimular-me com o seu cheiro e a sentir o seu corpo aveludado colado ao meu.
Adoro aquela poltrona em que me acomodo a ver televisão ou a ler um livro!  
Confesso...

terça-feira, 15 de março de 2011

HÁ DIAS AZARADOS

Reencontrei o Fernando Costa mais de 10 anos depois de eu ter saído de Coimbra em 1967.
Conheci-o na faculdade mas perdi-lhe o rasto quando ele interrompeu o curso para ir para a tropa em 1965.No pátio da empresa de vinagres, no Entroncamento, pertença de familiares seus, onde agora ele trabalhava, corriam obras de repavimentação, pelo que estava ali colocado um grande monte de pedras destinadas ao calcetamento.Num dos lados do pátio interior estava o escritório no 1º andar de um velho edifício que albergava no rés do chão um armazém repleto de garrafas de vinagres.Do outro lado da rua, o Frango Real, restaurante onde o Fernando Costa e muitos dos empregados da dita empresa habitualmente almoçavam.Certo dia, findo o almoço, o Costa atravessou a rua, passou o portão da empresa e, já no pátio, desdobrou o jornal que levava consigo, caminhando devagar e, desfolhando-o, ia lendo os títulos das noticias.Absorto na leitura, tropeçou distraído, no monte de pedras que ali estava, caiu e fez um lanho na testa. Meio atarantado ainda, aceitou a ajuda de um operário que o encaminhou para a enfermaria onde lhe limparam a ferida.Deram-lhe um maço de algodão e um frasquinho de álcool aconselhando-o a premir o algodão na testa e, de vez em quando, a embebe-lo em mais álcool, repetindo sucessivamente a operação até que o sangue parasse de correr.
Com o algodão numa mão encostado na testa e com o frasco de álcool na outra, resolveu dirigir-se à casa de banho do 1º andar e aí chegado, baixou as calças e sentou-se na sanita, que os intestinos assim o reclamavam.Por duas ou três vezes regou o algodão com mais álcool voltando a encostá-lo na ferida.Às tantas o sangue já tinha estancado e o Costa achou que já podia deitar fora o algodão. E assim fez...
Deitou-o para a sanita, ainda bem encharcado em álcool.Acto continuo, acendeu um cigarro e deitou o fósforo, ainda aceso também para a sanita.Claro que o fósforo aceso incendiou de imediato o algodão com álcool que ele tinha acabado de mandar para a sanita, levantando um fogacho que queimou o desprotegido traseiro nu do Costa.Convenceu-se o Costa que algum incêndio estaria lavrando no armazém por baixo do escritório, estando as chamas a subir pela canalização da casa de banho e, assomando a uma janelita que dava para o pátio, gritou:
- Chamem os bombeiros! Há fogo no armazém!
Não demoraram cinco minutos a chegar. Como não vissem qualquer fogo, subiram à casa de banho para indagar junto do Costa o que se teria passado.Seminu, este apontou-lhes para o traseiro, dizendo-lhes, exageradamente, que estava todo queimado. Colocaram-no numa maca e, enquanto desciam a íngreme escada de caracol que lhe dava acesso, o Costa ia relatando o sucedido.Um dos bombeiros, ao perceber finalmente o que se tinha passado, desatou a rir convulsivamente e, descontrolado, largou a maca que foi escorregando pelos degraus abaixo.O Costa, aflito, tentou agarrar-se aos prumos de ferro da escada mas, desastradamente, ficou com o braço enganchado entre dois deles. Resultado, fracturou o braço!
Lá o levaram para o Hospital de Torres Novas, com um golpe na testa, o traseiro queimado e um braço partido.
Pelo caminho, rebentou um pneu da ambulância e o motorista não coseguiu evitar o choque frontal contra uma árvore à beira da estrada. A porta de trás abriu-se e a padiola onde ia deitado o Costa, começou a deslizar, primeiro devagar, depois ganhando velocidade atravessou o alcatrão desgovernada.
O Costa foi cuspido e arranhou a perna no áspero e grosso betuminoso, ficando todo esfolado desde o joelho até ao tornozelo.
Correu três serviços: Ortopedia, unidade de queimados e serviço de pequenos curativos...
Há dias em que é melhor não sair de casa...

Rui Felício

quinta-feira, 10 de março de 2011

AMOR À PRIMEIRA VISTA


Desde sempre, ela tinha duvidado do tão propalado amor à primeira vista, mas agora estava certa que esse coup de foudre que incendiava repentinamente os sentidos, não era afinal uma figura de retórica.
Foi por isso que foi à loja da Rua Ferreira Borges onde há tempos tinha visto entrar aquele rapaz bem parecido, atraente, elegante, e perguntou se sabiam onde morava e o que fazia.
Disseram-lhe que era do Calhabé e que andava a estudar. Encheu-se então de coragem, esqueceu a sua congénita timidez, e resolveu ir até ao Café Aquário que ele frequentava, para esvaziar de uma vez, de dentro do seu peito, esse segredo dolorosamente guardado há mais de um mês.
Com ar melancólico, sentada na sala a abarrotar de gente, ela disse-lhe em voz sussurrada quase sem mexer os lábios, que o amava loucamente,  desde que há um mês o vira na Baixa. Pedia-lhe apenas que ele lhe desse a oportunidade de se conhecerem, de trocarem impressões...
Desde esse dia, não pensava em mais ninguém senão nele, quase não comia, acordava de noite a pensar nele ao seu lado, continuava ela a dizer-lhe, numa voz baixa, quase imperceptível, para não ser ouvida pelas restantes pessoas que estavam no Café.
Concentrado na leitura do Diário de Coimbra, de onde por vezes levantava os olhos, com ar alheado, parecia que ele, estranhamente, ainda nem tinha dado pela presença daquela bonita rapariga sentada na mesa ao lado.
Foi então que o Feliciano, apressado, entrou de rompante no Aquário, pediu uma bica ao balcão, e, reparando na presença do seu colega a ler o jornal, elevou a voz e berrou-lhe com o seu potente vozeirão:
- Estás bom Pedro? Não vais às aulas hoje?
Como não tivesse resposta, nem sequer um ligeiro aceno, deu a volta, postou-se mesmo em frente dele e repetiu a pergunta gritando ainda mais alto, perante o ar atónito e espantado da rapariga que não percebia a razão de tanta berraria.
- O seu nome é Pedro?, perguntou-lhe ela no mesmo registo de voz sussurrado com que antes lhe tinha estado a confidenciar a sua paixão.
O Feliciano, virou-se para ela e disse-lhe. Chama-se Pedro, é verdade, mas se quer que ele lhe responda tem de lhe gritar. É surdo que nem uma porta!
E tem a mania de só colocar o aparelho quando está nas aulas, concluiu...

Rui Felício

quarta-feira, 9 de março de 2011

NO CINEMA

Faltavam poucos minutos para as luzes se apagarem. Sentado na confortável poltrona, da Fila H, nº 7,esperava que chegasse a hora do inicio do filme, naquela moderna sala de cinema.
Apressadamente iam entrando os últimos espectadores, olhando os seus bilhetes e procurando os lugares neles indicados.
Uma jovem bonita, roliça, de curvas pronunciadas, percorreu a fila onde ele estava sentado, olhou, confirmou o lugar e sentou-se na Fila H, nº 9, a seu lado, ajeitando a mini saia que deixava ver umas coxas brancas, bem desenhadas.
Trocaram um olhar fugidio e um sorriso de circunstância, no mesmo momento em que as luzes se apagavam e surgiam no ecran as primeiras imagens do filme.
O cotovelo dele a pouco e pouco foi se encostando ao dela, ambos poisados no braço comum às duas cadeiras. Os seus olhos não se conseguiam despegar das coxas da rapariga, enquanto os braços de ambos se foram gradualmente encostando, sem que da parte dela houvesse nenhum sinal de afastamento ou indisposição. A perna dele a pouco e pouco encostou-se à dela. A respiração dele acelerava, o coração batia desordenadamente quando o ecran ficou negro e as luzes da sala se acenderam para o intervalo.
Afogueado, levantou-se para ir fumar um cigarro, não sem que antes, lhe dirigisse um sorriso que ela devolveu, mostrando uma boca provocantemente sensual que mais o endoideceu.
Voltou para a segunda parte do filme, disposto a levar mais longe os seus desejos. Logo que as luzes se voltaram a apagar, deixou a mão poisar em cima da perna dela. Os dedos iam roçando naquela pele macia, aveludada, devagar, com suavidade... Subiam milímetro a milímetro. Pressionava um pouco na face interior das coxas tentando afastá-las, mas quando isso aconteceu, ela pegou-lhe na mão e afastou-a.
Louco de desejo, ele voltou a colocar-lhe a mão entre as pernas e ela voltou a tirar-lha.
Estes avanços e recuos repetiram-se mais uma, duas, muitas vezes. Da última vez ele chegou mesmo a abafar um surdo gemido de dor, quando ela lhe beliscou a mão com força,  empurrando-a asperamente para longe das suas pernas.
Racionalmente, concluiu que a atitude dela não lhe deixava margem para dúvidas. A rapariga não lhe permitiria mais carícias. Antes que se gerasse algum escândalo que o deixasse atrapalhado, resolveu desistir definitivamente de lhe tocar.
Não fez mais nenhuma tentativa.
Levantou-se e saiu, envergonhado, antes de acabar o filme e sem para ela olhar sequer.
Mal sabia ele que aquela jovem mulher ali a seu lado, pensava de si para si, também ela já doida de desejo, quando o beliscou e lhe afastou a mão:
- Quando ele voltar a tentar, não resistirei mais, vou me abrir e entregar-me às suas carícias...

Rui Felício

segunda-feira, 7 de março de 2011

DESENCONTROS

Passaram-se mais de quarenta anos, desde que ela tinha saído de Coimbra para ir viver em New York...
Uma vida inteira!

Nos momentos de melancolia a Isabel abandonava-se aos seus pensamentos secretos, escondida dos olhares do marido e dos filhos, receosa que eles lhos adivinhassem. Perdia-se em recordações, deixava que a imagem do Luis, aquele que foi o amor da sua juventude, lhe aparecesse nítida, tão presente que quase sentia o seu contacto. Ondas de confidências, gritos de alma, desejos inconfessados abanavam-lhe o corpo, uma doce dor apertava-lhe o coração.
Tantas foram as vezes em que, abraçada ao seu marido, era ao Luis que realmente beijava, que acariciava, que sussurrava palavras de amor.
Nunca mais tinha tido notícias dele, mas jamais o esquecera.
Até que, há pouco tempo...
Viu o nome dele na internet. Ficara a saber que ainda vivia em Portugal, casado e com filhos, do outro lado do mar. Começaram a trocar mensagens, a princípio formais, depois mais íntimas.
Ela, uma mulher madura mas ainda fogosa e bonita, não se conformava por tamanha e tão longa separação.
Um dia, faço-te uma surpresa, apareço-te aí, nem que seja por uns dias, para desfrutarmos este amor que ainda nos une, escrevia-lhe ela nas mensagens que lhe mandava.
O Luis às vezes respondia-lhe que era ele quem lhe faria essa surpresa. Que também ansiava tê-la nos braços, mostrar-lhe todo o amor que também nunca deixou de lhe ter.

Certo dia, o Luis recebeu um telefonema. Era a Isabel a dizer-lhe que, como lhe prometera, estava no aeroporto da Portela para estar com ele. Indicou-lhe o hotel de Lisboa onde se iria hospedar por uma semana e pediu-lhe que fosse encontrar-se com ela.
O Luis, atónito, respondeu-lhe que naquele mesmo momento estava a desembarcar no aeroporto de Newark, para onde tinha ido à procura dela. Fazer-lhe a prometida surpresa...

Rui Felicio

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

SONHO DESFEITO

Tinha esperado aquela oportunidade, sem nunca revelar as suas intenções, planeara tudo em segredo, e agora que ela se lhe deparara, não a deixou escapar.
Olhou para ela e não resistiu. Enlaçou-a, cobriu-a, assumiu um ar triunfante, e pensou  consigo mesmo que, finalmente, tinha alcançado os seus desejos dissimulados durante muito tempo.
Pertenciam ambos ao mesmo extracto, completavam-se, mas ela sempre se lhe tinha esgueirado, oculta, sem se mostrar, como enguia escorregadia.
Não que ele lhe fosse indiferente, bem pelo contrário! Achava-o sedutor, bonito, um cavalheiro. Mas receava que a víbora da madrasta, vinda de uma poderosa família que dominava por completo o seu pai, lhe cortasse o desejo que ela também secretamente tinha de se juntar a ele, desfazendo-lhes os planos.
E os seus medos não eram infundados! O idílio só demorou alguns instantes, porque a poderosa madrasta, a manilha de trunfo, desfez-lhes o sonho e apressou-se, com um murro na mesa, a cortar a vasa formada pela Dama de copas e coberta pelo Valete de copas, naquele jogo de sueca.
Rui Felício

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

IN MEMORIAM

Partilhei com o Castanheira uma amizade sincera. Na faculdade e mais tarde na tropa, em Mafra. Era uma figura estranhamente sedutora que corria o périplo das cores do arco-iris, desde a mais esbatida à mais berrante, aproveitando de cada uma delas o sortilégio da fantasia e do sonho.
Antes da aula começar, empoleirava-se no estrado e caricaturava na perfeição os gestos e os tiques dos professores. Do Mota Pinto, do Lobo Xavier, do Carlos Moreira, do Rogério Soares, do Sebastião Cruz. Até do Afonso Queiró!
Sabia de cor e salteado todas as peças de Gil Vicente. Declamava a Eneida em latim, convidando-nos a debater a sua superior perfeição em relação à Odisseia e à Ilíada.
Foi actor no Ateneu de Coimbra, mas recusaram-lhe a entrada no TEUC. Levou uma tareia quando foi assistir, de capa e batina, a um jogo da Académica, empunhando uma bandeira do Sporting. Não porque fosse indefectível do futebol, mas porque era um paladino da liberdade, advogando o direito de ser simultaneamente estudante e sportinguista.
Na catequese tinham-lhe ensinado a rezar. Era avesso à hierarquia eclesiástica, mas orar não tinha mal, dizia ele...
A inveja da sua imaginação delirante, da sua popularidade e da sua cultura levava muitos colegas pseudo intelectuais oriundos de famílias com bolorentos pergaminhos, a catalogá-lo de pária. Que não era!
Nado e criado pobre, o Castanheira era humilde mas não subserviente. Amava a doçura da vida numa alegre manhã de sol. Quando os tostões lho permitiam, de guardanapo ao pescoço, babava-se de antecipado prazer em frente a um corriqueiro e fumegante bife com batatas fritas, na tasca da Tia Rosa na Portela, ensinando Direito aos camponeses que por ali paravam para se amesendarem, comerem uma bucha e beberem uma litrada de tinto ao fim do dia.
A infelicidade não o consumia porque a sua alma pairava em vaporosas nuvens atrás das quais havia de vir um dia o esplendor e a glória que ambicionava. Não que as quisesse para suplantar o seu semelhante, mas para ter o poder de influenciar e quebrar as injustiças do mundo.
Como tantos portugueses, para apressar a vinda do sonhado eldorado, o Castanheira rezava à Nossa Senhora de Fátima e comprava vigésimos de lotaria...
Uma coisa ou outra havia de resultar

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

LAÇOS SAGRADOS

Ia trémula, bela, elegante, de vestido branco. Tentava disfarçar o sal de uma lágrima furtiva com um meio sorriso indefinível.  
A Filipa tinha demorado muito a decidir-se! Ela bem sabia que era um passo daqueles que marcam uma vida, mas agora, vencidas todas as indecisões, caminhava lentamente pela ampla e infindável álea, em passadas cadenciadas, nervosa mas resoluta. Nada a faria recuar!
Apoiava-se no braço do pai, de cabelos grisalhos, elegantemente vestido, que a conduzia e lhe incutia confiança, apertando-lhe firme e suavemente a mão para lhe dar força.
Todos os olhares se dirigiam para ela, acompanhando-a, admirando-lhe o rosto tenso, emocionado, de uma profunda beleza. Ouviam-se comentários sussurrados à sua passagem.
Quando a Filipa viu o José ao fundo do corredor, de fato azul escuro e gravata cinzenta, irrepreensivelmente penteado, à espera que ela se aproximasse, o coração acelerou e chegou a pensar, no último momento, libertar-se do braço do pai e fugir, mas reconheceu que isso seria uma infantilidade. Agora que tudo já estava decidido!
De resto, a Deolinda, sua grande amiga e confidente, tinha-lhe dito que no principio ela ia achar estranha essa radical mudança de vida, mas que depressa se habituaria.
A silhueta elegante daquele belo homem que a aguardava, fazia-lhe disparar os pensamentos mais confusos. Foi àquele homem que dera o seu primeiro beijo, foi com ele que passara momentos de enorme felicidade, de quem foi amiga, namorada, amante, e com quem, pela primeira vez, experimentara os prazeres do amor e da paixão.
Tiveram os seus pequenos arrufos, como qualquer casal de namorados. Por vezes discutiam, é certo, mas diziam-lhe que isso era normal.
O pai libertou-se suavemente do seu braço, beijou-a com ternura e desejou-lhe a maior sorte do mundo na vida que agora iria iniciar, deixando-a ao lado do José.
Ficaram ambos de pé, hirtos, tensos, silenciosos, em frente ao Juiz que os aguardava para decretar o divórcio previamente negociado. Lá fora, a Deolinda esperava pelo José ...
Rui Felicio

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

NA PARAGEM DO AUTOCARRO

Que mulher!
Um corpo escultural, o nariz perfeito, bem desenhado equilibrava o rosto oval, de pele sedosa, onde sobressaiam uns olhos negros, profundos como um lago onde apetecia mergulhar, emoldurado por belas madeixas de cabelos negros.
Da sua boca de lábios carnudos, apetitosos, escapava-se de vez um quand...o um suspiro de impaciência a que se seguia um ligeiro virar da cabeça para me lançar um lânguido olhar e um sorriso que deixava ver duas fiadas de dentes imaculadamente brancos.
As pernas altas, torneadas, em cima de uns sapatos brilhantes de saltos finos, de agulha, davam-lhe a elegância de uma deusa. Por vezes, batia repetidamente com o tacão dos pontiagudos saltos dos sapatos, em sinal de ansiedade e expectativa.
Atrás dela, estático, tenso, na fila da paragem do autocarro, mirava-lhe as generosas curvas do corpo envolto por um vestido leve de seda que quase me deixava ver aquilo que imaginava. Sentia o seu cheiro perfumado, a proximidade e o calor do seu corpo. Retesava-me, contraído e, em vez de um sorriso, devolvia-lhe o olhar com um esgar revelador da ansiedade que também sentia, já indisfarçável.
As palavras que ia alinhavando na minha cabeça para lhe dizer, ficavam bloqueadas, presas na garganta.
Por fim, enchi-me de coragem, venci a minha timidez e disse-lhe:
- Desculpe minha Senhora, o salto do seu sapato em cima do meu pé, está a provocar-me uma dor horrível!