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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

CENAS DO QUOTIDIANO


Baixote, atarracado, o nariz vermelho, avinhado, ocupa-lhe dois terços do rosto e os minúsculos olhos ficam escondidos por trás das sobrancelhas grisalhas, fartas e despenteadas. Perna curta, o colarinho aberto mal envolve o pescoço gordo que lhe encima o tronco desproporcionado. A barriga proeminente escorrega-lhe por cima do coçado cinto de cabedal apertado no último furo.
Tem uma antiquada loja de louças na Av. de Roma que herdou do seu pai. Deve vender uma ou duas peças por dia, cuja receita mal lhe dá para pagar a renda. Mas não faz mal, diz ele. Com paciência, chegará o dia em que receberá um balúrdio pelo trespasse a algum Banco. Que o local é bom e bem posicionado, a dois passos da estação Roma do Metropolitano...
À falta de clientela, o Filipe passa os dias no passeio, encostado à já polida ombreira de cantaria, mirando o constante vai vem dos passantes, cumprimentando uns, cortando na casaca de outros.
Nisto, uma senhora alta, na casa dos quarenta e poucos, elegante, ar aristocrático, meneando sensualmente as ancas num andar firme e resoluto, passa em frente à loja, desprendendo uma fragrância provocante. O rosto irrepreensivelmente maquilhado, os lábios carnudos, escarlates, o vestido fino desenhando os contornos das coxas, um decote generoso, completavam a imagem de uma mulher de sonho.  
Comia-te toda! – rosnou o Filipe...
A esbelta senhora deu mais uns passos, estacou, virou-se, mediu com desdém o atarracado Filipe e, antes de prosseguir o seu caminho, disse-lhe:
- Com esse físico?!! Coitado! Tinhas um enfarte só nas provas...
O Filipe virou-se para mim e disse-me: - Já viste esta puta?
Não sei se é ou não é. Sei que chegou para ti, foi o que me ocorreu dizer-lhe.
Sempre detestei piropos ordinários...
Rui Felício

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O HÁBITO FAZ O MONGE?

Os proprietários daquele Café do Porto ao fundo da Av. da Boavista, perto do Castelo do Queijo, gabavam-se de terem uma clientela seleccionada, da burguesia portuense, supostamente oriunda das mais conceituadas famílias nortenhas. Não que lhes fosse exigido qualquer certificado genealógico. Bastava escutar-lhes o sotaque afectado, observar-lhes os trejeitos estudados, os maneirismos, o vestuário de marca.
Certo dia, três operários de uma obra de construção das imediações, vestidos de fato-macaco, entraram no tal Café, sentaram-se a uma mesa e pediram três “cimbalinos” e três bagaços, fuzilados pelos olhares críticos de duas senhoras que abanavam a cabeça, em frente, bebericando chá, com ar enjoado.
O empregado, trajado a rigor, de impecável “blazer” branco e lacinho preto “à papillon”, apontou-lhes a porta da rua, intimando-os a sair e a lerem a tabuleta afixada na porta com os dizeres “Reservado o Direito de Admissão”.
Uns tempos depois os mesmos operários voltaram ao Café, agora de fato e gravata, os cabelos irrepreensivelmente penteados sob uma densa camada de brilhantina. Um deles, fumando charuto, chamou o empregado e pediu-lhe três “Martell” em balão aquecido. Instantes após, o empregado, que não os reconhecera, regressava à mesa, com a garrafa do famoso cognac e três copos fumegantes em cima da bandeja.
Tomadas as bebidas, chamaram o gerente e informaram-no que não pagariam a conta porque os copos estavam demasiadamente aquecidos e porque os cognac’s eram uma surrapa, certamente fabricada em destilaria clandestina de Sacavém. Levantaram-se e encaminharam-se para a porta, seguidos pelos salamaleques, pelas vénias e pelos repetidos pedidos de desculpa do dono do café, que garantia a Suas Excelências que tal não se repetiria.
Obteve como reposta de um deles, que lhe apontava a tabuleta afixada na porta:
- Você é que devia ser impedido de entrar nesta espelunca!

Não sei se, naquele tempo, existia suporte legal que sustentasse essa tarja de “Reservado o Direito de Admissão”, que proliferava nos estabelecimentos comerciais na década de sessenta.
 Actualmente, sei que não é legalmente sustentada essa afixação.
Os estabelecimentos de restauração e os bares, são espaços públicos aos quais todos têm acesso e direito de permanência, salvo se manifestamente apresentarem sinais de embriaguez, se não mostrarem qualquer intenção de utilizarem os seus serviços ou se se recusarem a cumprir as suas normas privativas, desde que devidamente publicitadas.   
Felizmente os tempos mudaram...

Rui Felício

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

CORRUPÇÃO

O Presidente da Junta e mais o engenheiro-chefe  da Câmara dirigiram-se ao terreno escarpado sobranceiro à praia. O boletim meteorológico dizia que da parte da tarde iria começar a  chover  e, por isso, anteciparam a visita para antes do almoço.
Esperava-os o mestre de obras , Ramiro Lopes, que tencionava ali construir um conjunto de blocos habitacionais, aproveitando a excelente vista que a propriedade proporcionava.
Partiram, sem se precaverem contra o mau tempo. Chegados à praia, saíram do carro e começaram a subir a pé a íngreme escarpa. Ainda não tinham palmilhado metade do caminho, um negrume vindo do lado do mar, aproximou-se corrido pela ventania, escurecendo o ar. Bruscamente desabou sobre eles uma escardoçada fria e grossa, que o vento vergastava, deixando-os estonteados, atordoados, cambaleantes e patinhando no lamaçal escondido debaixo das urzes.
O Ramiro Lopes, abrigado numa barraca de madeira, no cume da escarpa, gritava-lhes com voz esganiçada que tentava sobrepor à borrasca, indicando-lhes o carreiro por onde mais céleres poderiam fugir ao temporal.
Protegidos já, dentro do palheiro, ainda resfolegando da cáustica subida, foram ao que interessava, porque, como dizia o Ramiro, tempo é dinheiro.
O engenheiro ainda tentou argumentar, dizendo que o monte era demasiadamente íngreme, dificultando os arranjos exteriores e acessibilidades da urbanização.
Além disso existia uma profunda linha de água que atravessava a escarpa e que a construção iria bloquear o escorrimento livre da chuva, provocando inundações e deslizamento de terras.
O Presidente da Junta abanava a cabeça, com fraca convicção mas em sinal de assentimento.
O Ramiro, impante, contrapunha:
- Ora, ora, meus Senhores! Se o terreno é íngreme, arrasa-se! Se a vala é funda, entulha-se! O progresso e o turismo exigem-no! A bem do nosso País que tão precisado está do dinheiro dos turistas...

Um mês depois era publicado um Edital na vitrina do átrio da Junta, meio escondido debaixo da profusa papelada diariamente ali afixada e que o submergia por completo. Dava um mês para a população se pronunciar sobre a urbanização, informando que findo esse prazo, o projecto iria ser aprovado.
Hoje, aos fins de semana, o engenheiro-chefe acorda, abre a janela de par em par, sorve o ar húmido que lhe lubrifica as narinas e escuta deliciado o rebentar contínuo das ondas lá em baixo, na vistosa vivenda isolada que o Ramiro lhe ofereceu no melhor sitio da urbanização.
Muito perto, reside a Marta, amante do Presidente da Junta, numa outra moradia oferecida pelo Ramiro.
Para evitar deslizamentos de terras que possam destruir os 58 blocos habitacionais construídos ao longo da falésia, a Câmara implementou um dispendioso e complexo sistema de fundações e muros de suporte protectores da urbanização.

Rui Felicio

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

ÂNSIA NA MADRUGADA

Na escuridão do meu quarto, acordei com os seus sussurros nos meus ouvidos, com a leveza do seu toque no meu corpo nu, primeiro no pescoço, depois no peito, na barriga.
Desceu e tocou-me com uma impressionante suavidade nas coxas, subindo devagar. De vez em quando a dor aguda e doce das suas mordidelas, fazia-me estremecer, para logo acalmar com a continuação da sua passagem pela pele, com o seu sussurrar...
Adivinhava-lhe a ganância que me ia esvaziando, enquanto me chupava, sôfrega.
Em vão tentava agarrá-la, pegar-lhe, pagar-lhe na mesma moeda. Era esquiva...
Ansioso, acendi a luz, mas não a consegui agarrar, como eu era meu desejo. Esgueirava-se-me por entre os dedos. Parecia rir-se de mim...
Logo que voltei a apagar a luz, retomou o que tinha andado a fazer comigo, insaciável.
Acabei por adormecer, exausto.
Quando acordei de manhã, o lençol estava pontilhado de manchas de sangue. E ela ali, nua, relaxada, saciada, inchada...

Com uma palmada, consegui finalmente esmagar o estupor da melga!

Rui Felicio

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

LAVAGEM AO CÉREBRO

Com quatro bocas para sustentar lá em casa, as contas da luz, da água e do gás, a prestação do frigorifico para pagar, o Mário, pedreiro nas obras, já não sabia o que fazer para esticar o ordenado que recebia ao fim de cada mês. Ganhava 750 euros brutos. Descontados os impostos e as contribuições, ficava com 652 euros. Já estava endividado até aos cabelos na mercearia do bairro e o dono ameaçava-o de lhe cortar os fiados.

Balouçando-se na luxuosa poltrona do seu escritório, o patrão deu-lhe uma ensaboadela mental quando ele lhe foi pedir aumento de ordenado:

Suponha o meu amigo que eu lhe dava mais 100 euros por mês. Você ao fim de um mês ou dois começava logo a mirar com olhos de cobiça o emprego de um seu vizinho que ganhasse mais 100 ou 200 euros, punha-se a meter cunhas, incomodava-se a revolver céu e terra, a traficar influências junto do Presidente da Junta, quem sabe do Presidente da Câmara, e, para azar seu, acabavam por lhe arranjar um lugar numa empresa municipal, como fiscal de obras.
Davam-lhe 1.200 euros por mês, mas você ficava a perder. Agora estava nas mãos deles, tinha que votar em quem eles lhe mandassem. E o dinheiro que lhe davam,  parecendo muito, era realmente menos do que aquele que eu lhe pago.
Naquele cargo, tinha que passar a conviver com engenheiros, doutores, políticos. Era obrigado a apresentar-se decentemente vestido, tinha que manter na moda o guarda-roupa da sua mulher, mandá-la ao cabeleireiro uma vez por semana e os seus filhos não podiam ir para a escola com os ténis rotos.
Entretanto ia deitando o olho a um cargo mais vantajoso. Seria chefe de um qualquer serviço da Câmara, daqueles onde se trabalha pouco e se ganha melhor. Em pouco tempo iria sentir no corpo a doença do sedentarismo por falta da actividade física que, para seu bem, tem a sorte de praticar na minha empresa. Com a inacção física, viria a doença de que sofrem tantos anémicos, entorpecidos e balofos que por lá andam. E que já só comem por desfastio. Qualquer leve corrente de ar lhe traria uma pneumonia, uma ponta de sol mais quente um aneurisma cerebral. Você faz ideia do dinheirão que ia gastar para se tratar?
Não me agradeça, amigo Mário. Mas em defesa da sua saúde e da sua vida, não lhe devo  aumentar o ordenado.

Tem razão! Nunca tinha pensado nisso...Obrigado, patrão! – agradeceu o Mário com uma vénia...

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

FANTASIA



Parecia adormecido...
Só o cadenciado ondular traía a sua calma e denunciava a imensidão.
Embalado pelo som surdo das ondas a desfazerem-se na praia, ali fiquei, sentado na areia húmida, a olhar a linha do horizonte, onde se fundiam os azuis do céu e do mar.
Sem querer, recordei as vezes que ali passeei com a minha filha, de mãos dadas. Éramos cúmplices daquele ambiente mágico, daquela lonjura ao nosso alcance.
Por vezes nadávamos, lado a lado, ao longo da linha da praia, entre as rochas que a delimitavam a norte e a sul.
Foi numa dessas vezes que tudo aconteceu.
A dado momento, enquanto nadávamos em direcção às rochas, algo me chamou a atenção.
Pareceu-me a cauda reluzente de um grande peixe dourado. Preocupado, esperei pela minha filha que nadava atrás de mim. Acenou-me com a cabeça de que também vira o mesmo que eu.
Mantivemo-nos à tona, com lentos movimentos dos braços e das pernas, observando, atentos, o local onde tínhamos visto a bela cauda do peixe.
De repente, entre o susto e a estupefacção, vimos uma coisa que jamais imagináramos poder existir naquelas águas.
Emergindo do mar, surgiu uma bela mulher, de longos e anelados cabelos dourados, que nos deixava ver um corpo escultural.
Os seus olhos amendoados, cor de mar, meigos, melancólicos, hipnotizavam-nos. Era impossível deixar de sentir aquele olhar trespassar-nos a retina e mergulhar no mais fundo do nosso ser, acelerando-nos o coração, que doía doce...
Dos seus lábios carnudos e bem desenhados, saía um som melodioso, suave, um quase choro, que nos arrepiava os sentidos...

Era com certeza uma sereia. Afinal existiam!
Por instantes, ela ficou ali a fitar-nos num movimento suave , síncrono, até que mergulhou e desapareceu nas profundezas...
Ainda esperámos algum tempo, na expectativa do seu reaparecimento. Mas, até hoje, nunca mais foi vista...
-Filha, guardas um segredo? – perguntei...
Meio confusa, meio aturdida, respondeu-me que sim...
Disse-lhe que aquela visão, seria o nosso segredo. Ocorreu-me justificar-lhe o pedido, fantasiando e dizendo-lhe que as sereias não aparecem a todos, e que, se aquela tinha resolvido aparecer-nos é porque confiara em nós, é porque nos achava pessoas de bem, pessoas especiais...
O olhar da sereia mostrou que tinha confiança em nós, em que saberíamos manter o segredo que lhe permitisse continuar a sua vida no paraíso do fundo do mar, sem ser incomodada pela multidão de curiosos e incrédulos que acabariam por devassar a sua privacidade.

Sei que a minha filha, passados tantos anos nunca quebrou a sua promessa de manter intacto o nosso segredo.
E eu, também não estou a quebrá-lo, porque não vos vou dizer em que praia é que isto aconteceu...


Rui Felicio

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

UMA DIA NO BUÇACO

Fizemos uma excursão à Serra do Buçaco, numa camioneta alugada em Coimbra. Merendámos na mata o farnel que cada um tinha levado de casa. Bolos de bacalhau, sandes de presunto e de queijo, bocados de galinha assada, broa e azeitonas retalhadas, coiratos, torresmos, de tudo havia... Umas goladas de vinho e de laranjada Bussaco acamavam a comida no estômago. No fim uns bolos de arroz e uns queques comprados a crédito, no dia anterior, no café do Sr. Silva.
Já no sopé da serra, numa tasca, afastámos as fitas metálicas penduradas na porta para afastar o mosquedo e entrámos para tomar a bica. À porta, um homem com uma chibata na mão, trazendo um pequeno burro pela arreata, perguntava-nos se queríamos dar uma volta no asno, por vinte e cinco tostões cada viagem. Perguntámos-lhe se o bicho dava coices e o homem sossegou-nos. Que não, que era manso...
O Pires foi o primeiro a montar o animal. O dono recebeu o dinheiro, sentou-se num marco de pedra à beira da estrada e zurziu uma chibatada no lombo do quadrúpede que, espetou as orelhas e arrancou a trote calmo, até se perder de vista na primeira curva do caminho. Uns bons dez minutos passados surgiu do lado oposto da povoação ainda com o Pires em cima dele.
Depois de mais alguns terem feito o percurso que o burro já sabia de cor e salteado, chegou a minha vez. Paguei os vinte e cinco tostões e alcei a perna por cima do cachaço do malcheiroso animal. Alto como sou, encolhi as pernas para não ficar com os pés no chão. O burro arrancou após a chibatada do costume.
Estava tudo a correr bem quando já à chegada, inesperadamente, mordido por algum insecto invisível, o pequeno jumento deu dois coices, e partiu à desfilada pelas ruas da aldeia, com o focinho entre as pernas dianteiras, zurrando sem parar. Uma matilha de cães escanzelados vindos não sei de onde, perseguia o burro, latindo e rosnando. Mulheres de lenço preto na cabeça acudiam aos postigos, às janelas, para verem a polvorosa.
Um rancho de cachopos, em grande gritaria, foi-se formando atrás de nós, correndo e serpenteando pelos quintais e pelas ruelas.
Numa das vezes que passámos perto do café, gritei, aflito, para o dono do jumento: - Como é que eu paro isto?
Desmonte homem, desmonte! Assim fiz! Empertiguei-me, deixei os pés arrastarem pelo chão e o asno esgueirou-se-me por entre as pernas, continuando desenfreado em direcção à mata.
Valeu-me ser comprido!


Rui Felício

AVAREZA


Bateram ao longe, na Torre da Universidade, as doze badaladas da meia noite.
Empurrou devagar a porta do palheiro onde dormia, perto da Arregaça, evitando o chiar dos gonzos ferrugentos. Escutou atento, quedo, olhar de lince a perscrutar na escuridão. Nem uma palha mexia, nenhum sussurro. Apenas o desconsolado coaxar de um rã solitária, ao longe, quebrava o silêncio da noite.  
Com mil cautelas, o “Carolíngio” voltou a encostar a porta e saiu, pé ante pé, envolto numa esburacada capa alentejana, a cabeça coberta por um seboso capuz de serapilheira que lhe escondia o rosto.
A lua, em quarto minguante, projectava fantasmagóricas sombras dos pinheiros e iriava de luminosas pérolas os charcos formados pelos pingos grossos da chuva que horas antes tinha desabado.
De vez em quando parava, tenso, ouvido à escuta, olho à espreita, o pé direito fincado à frente e a ponta do esquerdo colada à terra, mais atrás. Pronto para o impulso de fuga ao menor sinal...  
Mas não. Nada! Só os gemidos da folhagem à passagem da brisa que corria, quebravam a quietude.
Foi subindo, por entre as urzes, o mato, as silvas e o musgo enlameado que atapetavam a colina do Pinhal de Marrocos.
Era perto da mina que estava o seu tesouro, amealhado durante mais de vinte anos de mendicidade na cidade.
Hoje, vinha aumentá-lo, enriquecê-lo, juntar-lhe o pecúlio granjeado durante o dia.
Como sempre, quedar-se-ia junto dele, apalpando-o, tomando-lhe o peso, com o sigiloso testemunho dos  pinheiros e das nuvens pesadas que emolduravam o ténue luar. Muito depois, voltaria a tapar a cova com a pesada pedra que a escondia e regressaria.
Guardar as moedas das esmolas que lhe davam, era o único prazer que a vida lhe dera. Nunca desperdiçara um tostão em nada que lhe parecesse supérfluo. Alimentava-se de casqueiros secos, de sopa azedada e de algum resto de carne que lhe davam, vestia-se com roupas que lhe ofereciam. Achava um desperdício, substituir o fétido catre onde dormia desde há anos. Calafetava com lama as frinchas das tábuas do casebre para evitar o frio da aragem e do vento. Sentia-se feliz e, no íntimo, ria-se da vaidosa presunção dos senhores doutores que o esmolavam, dizendo para os seus botões:- o dinheiro que este me dá, faz-lhe mais falta a ele do que a mim...

Levantou a pesada laje que recobria o tesouro, meteu as mãos ávidas de prazer no fundo buraco, vasculhou, rebuscou, mas nada encontrou! Estava vazio! Praguejou, ameaçou em vão, e, por fim, soltou um agonizante grito rouco que o eco da outra margem do Mondego lhe devolveu segundos depois. Alguém descobrira o tesouro e lho roubara...
Pelas suas contas, o suficiente para serem compradas duas ou três casas na cidade!

Pela primeira vez na vida, recriminou-se por nunca ter tirado proveito daquele dinheiro. Mas era tarde!   


Rui Felício

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

FOGO PRESO


Não falhava!
Todos os anos em Agosto, lá ia eu pernoitar em casa do meu avô na véspera da procissão da Festa das Torres do Mondego. Despertava cedo, no dia seguinte, com o estralejar dos foguetes que ecoava do outro lado do Mondego, nas Carvalhosas, com a algazarra dos cães a ladrar e com o barulho infernal dos bombos dos Zés Pereiras, acompanhados pelos estridentes choros das gaitas de foles .
Naquele ano, a festa ia ser de estalo. O juiz, António Fueiro e os restantes componentes da Irmandade era tudo gente de primeira escolha. Pela primeira vez ia haver fogo de artifício, vindo especialmente de Gondomar, que era longe como um milhão de diabos. E o melhor que se fazia em Portugal, garantia o pirotécnico!
Raios parta o sacana do homem, dizia o regedor, referindo-se ao pirotécnico. Homem duma cana, corroborava o Toino Pataqueiro, enquanto levava à boca mais um tinto morangueiro e besuntava os dedos num naco de toucinho cru. Do fogo de artifício iria emergir no ar uma barca serrana toda engalanada, coisa nunca vista, nem nas Festas da Rainha Santa em Coimbra! Nem mesmo nas da Senhora da Agonia lá no Minho, acrescentava o vendedor do foguetório ...
No ano anterior, a festa tinha sido um fiasco. O Ti Zé Carne Assada, que foi o juiz desse ano, só se tinha preocupado em apresentar lucros com a quermesse e com a venda de bilhetes para o baile no recinto da Junta. Ainda por cima, entregou o dinheiro todo ao Padre João, para obras na igreja.
Na taberna do Sr. Almeida, o António Fueiro não se cansava de espalhar a novidade. O coração quase lhe saltava do peito rude quando se imaginava na noite do arraial a ser aclamado pela aldeia.
No rio, lá em baixo, o pirotécnico afadigava-se a montar o fogo preso, em duas barcas ancoradas na correnteza, para o grande festival da noite da festa. Seria dali que os foguetes de lágrimas se desprenderiam, para espanto dos aldeões, varrendo com as suas luzes multicores o casario da povoação.
E chegou a hora tão ansiosamente esperada. Toda a gente se acotovelava à beira da estrada de Penacova que atravessa a terra, no pátio da Junta e no adro da igreja. A um sinal do Fueiro, um impaciente cachopo, limpou o ranho à manga da camisa e desatou em louca correria pela quelha que vai dar ao rio, para avisar o homem dos foguetes que podia começar.
Uma salva de três morteiros assinalou o início. A seguir, a populaça o que viu, foi o Mondego, lá em baixo, iluminar-se de várias cores e uma densa nuvem de fumo elevar-se lentamente em direcção à aldeia.
O impacto dos três primeiros foguetes tinha aberto um buraco no chão meio apodrecido de uma das barcas que se foi afundando lentamente com todo o arsenal pirotécnico a bordo. Os foguetes disparavam para a esquerda, para a direita, mas não para o ar, como bichas de rabiar, incendiando  o fogo preso que estava na outra barca.
Porém, o homem de Gondomar tinha parcialmente razão! Como prometido, uma das barcas serranas boiava nas águas toda engalanada pelas labaredas e por uma estrepitosa e colorida miríade de chispas. Só lhe faltou subir aos ares... 
Rui Felício

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

VIAGEM DE METRO

Há já muito tempo que não viajo no Metro de Lisboa. Mas reconheço que é um excelente meio de transporte quando se tem urgência em atravessar a cidade de um ponto a outro.
Lembrei-me de um episódio nele passado, quando ainda era jovem, há já muitos anos...
Tinha embarcado em Entre-Campos, em direcção ao Rossio. A carruagem não ia muito cheia. Consegui encontrar lugar sentado, acomodei-me e tirei da pasta um livro que andava a reler, do Processo de Franz Kafka.
Já o tinha lido algumas outras vezes e de cada uma que lia era-me possível imaginar um destino diferente para o Sr. Kafka.
Olhando por sobre as suas páginas amareladas, pude observar poucos metros à frente, num daqueles bancos de costas para as janelas que alguém inspiradamente baptizou de “banco dos palermas”, uma linda e elegante morena de olhos negros. Discreta no vestuário mas suficientemente bonita para que se destacasse entre as demais mulheres que viajavam na carruagem.
Durante a viagem, por uma vez ou outra arrisquei-me a fitá-la. Fui surpreendido por um olhar de retorno e um disfarçado sorriso. Foi no meio dessa troca de olhares que na estação do Saldanha entrou um homem de avançada idade, casaco coçado de tamanho bastante maior que o corpo franzino que envolvia , trazendo na mão uma Bíblia de capa tão carcomida e antiga que cheguei a pensar se não se trataria de um original das sagradas escrituras.
O homem, postou-se em pé em frente ao “banco dos palermas” e começou, em altos brados, a apregoar a mensagem de Cristo, levando à letra a recomendação de “ide e espalhai a boa nova em toda a parte!”. Percebia-se a frouxidão da sua dentadura postiça, o que lhe dificultava a dicção.
O seu arengar era acompanhado da saída ininterrupta de gotículas de saliva com que, entre uma palavra e outra, salpicava os seus involuntários ouvintes.

Mas eu estava mais preocupado era em não perder de vista aquela bela mulher. Peguei num lenço de papel que trazia no bolso e rabisquei rapidamente o meu nº de telefone... Já próximo do Rossio, levantei-me, enchi-me de coragem e, antes de sair, entreguei o lenço àquela mulher.

Ao mesmo tempo, o velho pregador entusiasmou-se no sermão e disparou contra a formosa mulher ,um consistente e avantajado perdigoto, que a atingiu em cheio na testa.

O comboio já começava a abrandar para a entrada na estação do Rossio.

Ela com um sorriso constrangido, aproveitou o lenço de papel que eu lhe dera, desdobrou-o e antes que eu esboçasse qualquer reacção, esfregou-o na testa limpando o cuspo com que o pregador a tinha atingido durante a prelecção.

Virou-se para mim e disse-me educadamente:

- Muito obrigado, senhor...

E devolveu-me o papel! Sem sequer se ter apercebido que eu tinha lá escrito o nº de telefone!
Do lado de fora da carruagem, em plena estação, vi o comboio arrancar de novo. Através da janela , vi, a distanciarem-se, aqueles belos olhos negros, aquele lindo sorriso e aquele enorme borrão de tinta azul que lhe ficara a manchar a testa.

Na minha mão, o lenço de papel amassado, com o nº de telefone esborratado, que ela, com cortesia, me devolvera... Rui Felício

15 CONTOS PARA NADA!


O Alberto, caixeiro viajante, vivia em Coimbra, mas passava a semana fora, a vender os seus produtos por todo o País.
Sempre que calhava passar por Penamacor, hospedava-se na Pensão Alzira. Era como se já fosse da casa. A Alzira e o João, seu marido tratavam-no como se fosse da família.
Certa noite, depois de jantar, sabendo que o João tinha ido a Lisboa tratar de um assunto e que o comboio da Beira Baixa só o traria de volta cerca da uma da manhã, dirigiu um lânguido olhar à Alzira e fez-lhe uma inesperada proposta. Dava-lhe 10 contos se ela fosse para a cama com ele antes de chegar o marido.
Ela saiu da sala esbaforida e voltou pouco depois com um enorme facalhão, com ar ameaçador.
Disse ao Alberto que até não lhe desagradava a ideia, mas que jamais faria nada sem que o marido concordasse. Por isso, iriam esperar pela sua chegada e ela perguntar-lhe-ia se ele a autorizaria a aceitar o negócio.
O Alberto, aflito, ainda lhe pediu várias vezes para ela esquecer a proposta que num momento de loucura ele lhe fizera.
Mas a Alzira estava decidida! Apontou-lhe a faca perto da garganta. Esperariam e ela faria aquilo que o marido achasse melhor.
Por volta das duas da manhã, o João entra em casa, beija a mulher, olha o Alfredo compungido e encolhido a um canto e perguntou o que se passava.
- Aqui o nosso amigo Sr. Alberto fez-me uma proposta muito interessante! - disse a Alzira.
- Ofereceu-me 10 contos para nos comprar aquela mula velha e meio cega que temos no quintal. Mas eu não quis decidir nada sem tu vires. Resolve tu! – continuou ela, dirigindo-se ao João...
O Alberto, até aí, calado e assustado, fez um sorriso rasgado, virou-se para o João e disse-lhe:
- A D. Alzira está equivocada Sr. João. Eu ofereci foram 15 contos.
O João, espantado, tartamudeou para a mulher:
- Oh Alzira, então era preciso esperares por mim? Aquela pileca nem um conto de réis vale, mulher!
Olhou o Alberto e disse-lhe:
- Meu amigo, a mula é sua! Dê cá os 15 contos!
No dia seguinte, o Alberto arrastou a mula por uma corda a caminho da fronteira. Dois quilómetros mais à frente, puxou da pistola que habitualmente trazia consigo, deu dois tiros no animal e encaminhou-se à estação de Fatela para apanhar o comboio...

Rui Felício

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

OCASO


Ele já estava velho.
Não sorria. Ou quase não sorria. O seu único momento de felicidade, se é que se pode chamar felicidade a um ténue e imperceptível esgar, era quando se sentava em frente da casa para assistir ao pôr-do-sol. Ao lento mergulhar no mar, daquela bola de fogo, lá na linha do horizonte...
Desde a morte da mulher há cinco anos, só isso lhe dava algum prazer. Quando não chovia, sentava-se na cadeira de baloiço no quintal da sua velha casa de pedra às cinco tarde, e só dali saía quando o último fogacho de luz atirada pelo sol desaparecia por completo.
Foi assim desde que enviuvou...
Mas em meados de Janeiro ou Fevereiro, armou-se burburinho no terreno baldio em frente à sua casa. Tapumes, tijolos, areia, cimento, uma grua... Barulho infernal durante o dia. E aos poucos foi surgindo no caminho uma torre residencial que lhe obstruía a visão do mar.
Era o progresso! O velho não resmungou. Nem sequer expressou qualquer indignação. Ainda lhe disseram para reclamar na Câmara de Mafra, mas recusou, ciente da sua impotência...

Morreu no verão do ano passado... É normal os velhos morrerem...
Hoje, quase um ano depois, os moradores da torre desfrutam do melhor pôr-do-sol da Ericeira, mas são raras as vezes que dão uma espreitadela apressada pela janela.A azáfama da vida não lhes deixa tempo para isso...
Basta-lhes dizer aos amigos que o seu apartamento tem uma vista fantástica, um pôr-do-sol inigualável.
É o ter em vez do ser...A felicidade para eles é uma coisa muito mais complexa do que era a do velho que morreu.

Rui Felicio

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

ALMOÇO NO DONA ELVIRA


Um beijinho à Graça Gaspar durante o almoço...

Ainda no Samambaia, o Tonito Dias encarregou-se de marcar mesa, pelo telemóvel, para o almoço de uma dúzia e meia de convivas.
Já no Dona Elvira, tive o privilégio de ficar sentado a seu lado, em frente ao Quito e ao seu e nosso amigo Henrique, de Santo Tirso, que no fim do repasto bem regado, tocou e cantou uma balada de sua autoria, dedicada aos coimbrões do Bairro.
A beleza do poema e da música, comoveram-me de forma indisfarçável. Os olhos humedecidos do Quito mostravam que eu não era o único. Aquela balada foi o catalisador da latente saudade que os risos nervosos não conseguem esconder.
As recordações da nossa juventude no Bairro saltam e tomam vida, de cada vez que se proporcionam estes convívios. A carapaça dos convencionalismos que a vida foi construindo à nossa volta, desaparece. Propositadamente, afastamos o formalismo protector  que as nossas diversificadas actividades nos impuseram. Ainda que por efémeros instantes, voltamos a ter outra vez vinte anos!
Ao meu lado, o Tonito Dias, talvez para disfarçar a sua própria comoção, no fim da balada do Henrique, debitou duas ou três curtas e sintéticas tiradas filosóficas a que nos habituou, proferindo a sentença final:
- Oh companheiros, isto não há dinheiro que pague!
Por coincidência, nesse mesmo momento, a empregada dirigia-se à mesa com a conta.
Ficou surpreendida e sem saber bem o que fazer, quando lhe dissemos, com ar compenetrado:
- Olhe menina, leve lá a conta porque, como aqui estávamos a dizer, “não há dinheiro que pague!”
  
Rui Felício

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

AGONIA EM FRENTE AO GRECO


O Sr. Dias usava dentadura postiça...[Clique]
O seu fiel Tabú acompanhava-o sempre, parecendo orgulhoso do sorriso luminoso do dono e este da amizade e fidelidade do cão rafeiro que, com ele, partilhava um casebre ali para os lados da Quinta das Flores. Certa noite, o Tabú fitava apreensivo o seu dono, ao vê-lo, agoniado, em frente ao portão do GRECO, meter os dedos à garganta e provocar um abundante vómito, depois de ter estado numa patuscada no Capim, onde comeu de tudo e em quantidade, bebendo talvez para além da marca.
O cão lambia e saboreava o vomitado, e de súbito abocanhou, sôfrego e apressado, a dentadura do dono que, no meio dos espasmos, se lhe soltara, caindo no chão.
O Sr. Dias ainda tentou arrebatá-la da boca do Tabú, mas este, obedecendo ao seu instinto, rosnou-lhe e engoliu-a.
Com dificuldade em articular as palavras o Sr. Dias berrou-lhe, ameaçou-o, ordenou-lhe que lhe devolvesse os seus dentes. Mas o Tabú, de rabo entre as pernas, parecia querer dizer-lhe que já nada havia a fazer. Já os tinha no estômago...
O dono levou-o para casa e fez-lhe um clister. Era a única forma, expedita, de apressar a saída da dentadura, através do ânus do cão. Era preciso que ele defecasse! E quanto mais depressa melhor!
Pacientemente, sentado, com a cabeça entre as mãos, O Sr. Dias esperou, esperou...
Até que, finalmente, o cão expeliu toda a carga que lhe enchia e magoava os intestinos.

No dia seguinte, o Tabú parecia mais orgulhoso do que nunca, ao olhar o Sr. Dias passear-se pelo Bairro, cumprimentando quem passava e exibindo ostensivamente o seu belo sorriso...
Aquele cão sentia que, agora, também já era um pouco dono de uma parte do seu dono...
Rui Felício

AMOR UTÓPICO


Envolveu sem pressa as curvas generosas do seu corpo com a toalha macia de feltro.Em movimentos suaves como carícias, aquela mulher voluptuosa ia secando a pele húmida, convidativa, nos mais recônditos lugares, com uma destreza que jamais nenhum amante seria capaz de fazer.
Fechou a janela para impedir que o vapor quente da água se escapasse da casa de banho.
Olhou o espelho que reflectia a sua imagem desde o rosto até um pouco abaixo da cintura.
A sua curiosidade feminina levou-a a deixar cair a toalha e observou-se demoradamente...
Com os olhos fixos no espelho perguntou-se mentalmente a si mesma o que procurava ela.

Algum enigmático segredo se mantinha oculto e inexplicado. Uma mulher era apenas aquilo que ela estava a ver? Não seria necessário redefinir as concepções de pecado, de amor, de humanismo, de vida?
Alguma célula mal concebida não estaria em falta ou perdida por um erro de paralaxe que tudo distorcia? Que estranho que ela se sentisse apenas e só aquilo que via!

A ígnea neblina do vapor de água ia tornando a imagem no espelho menos nítida. Sacudiu a cabeça, abandonou estes pensamentos e procurou os chinelos. Claro que não há mais nada, pensou conformada. Virou as costas ao espelho e saiu da casa de banho...
O espelho quis chamá-la, explicar-lhe. Ela não era só o que ele lhe mostrava na sua gelada e estática postura. Aquele corpo seria diferente, quando ela percebesse a verdade mais irrefutável. A verdade do amor que ela nunca teve...

Desgraçadamente ele sofre o seu idílio sem esperança, a indiferença daquela bela mulher dói-lhe, mas a sua rigidez não a atrai. Todos os dias a vê, nua, apetecível, mas nada pode fazer. Será que ela não percebe que não é ele que a reflecte mas sim ela que o reflecte a ele?  

Se por dentro da sua superfície brilhante circulassem vasos sanguíneos, o espelho teria empalidecido quando, subitamente, a viu regressar à casa de banho de onde tinha acabado de sair. Teria ela percebido os seus pensamentos? Teria ouvido os seus sussurros? Teria compreendido o seu drama, o seu amor por ela? Inquietou-se, receoso mas esperançado.

Ouviu-a murmurar enquanto desligava o interruptor, que seria certamente por ela se esquecer tantas vezes de apagar a luz da casa de banho que a conta da electricidade era sempre tão alta no fim do mês.
Deixou o espelho na escuridão. Sem a sua imagem, sem pensamentos românticos, sem utopias, ele nada poderia agora reflectir. Tornou-se nada...
Voltou a ser uma massa fixa à parede sem objectivos, sem significado, como um peito sem amor.

Foi então que todas as pequenas gotas do vapor de água começaram a deslizar pela face nua do espelho.
Como lágrimas...

Rui Felício

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

FUI GUARDA-REDES DE HOQUEI

Nunca consegui aprender a patinar, embora o tivesse tentado algumas vezes..
Em miudo, joguei hóquei muitas vezes no bairro, mas com troços de couve e com os bueiros a servirem de balizas.
Mas nessas partidas os jogadores não andavam de patins.
Anos mais tarde, em 1967, eu era dirigente da Secção de Ténis de Mesa da Associação Académica, e por isso convivi bastante com a malta das outras secções desportivas, entre as quais a de Hoquei em Patins.
Havia um grupo muito ligado a essa modalidade na Rua do Brasil. Certo dia, combinaram ir assistir a um jogo que a Académica ia disputar fora, com o Minas da Panasqueira.
Só já me consigo lembrar do Chichorro que integrava esse grupo e que, tal como eu, tambem alinhou nessa viagem de apoio à Briosa.
Saíram de Coimbra uns seis carros, onde viajaram os jogadores, directores e acompanhantes, distribuídos aleatoriamente por cada um deles. Os primeiros dois carros a chegar, transportavam quatro dos jogadores da equipa, um director, os equipamentos e eu próprio.
Enquanto não chegavam os restantes carros, os jogadores foram-se equipando e a hora do jogo foi-se aproximando. O atraso na chegada dos outros quatro carros começou a tornar-se preocupante e com razão.
Naquele tempo não havia telemóveis para sabermos o que se passava. De facto, o jogo iria iniciar-se daí a uns dez minutos e era preciso a equipa apresentar-se com pelo menos cinco elementos.
Faltava um, portanto.
Seria uma vergonha a Académica entrar em campo desfalcada. Repentinamente, dei comigo a ser olhado insistentemente por todos os presentes no balneário.
- Amigo Felício, tens que jogar enquanto o resto da malta não aparece! - disse um
- Eu nem sei andar de patins!
esclareci eu abrindo os braços
- E tenho medo de levar alguma bolada! acrescentei temeroso...
Um a um todos me apresentaram argumentos para me convencerem a alinhar:
- Que para estar à baliza não é preciso saber patinar, que basta estar apoiado nas pontas das botas, que as caneleiras e a máscara me protegeriam das boladas, e, argumento decisivo face ao meu amor à Briosa, que eu certamente não quereria deixar a nossa Académica passar pela vergonha de entrar em campo só com quatro jogadores.
- Poderia até ser considerada uma ofensa ao Clube local e gerar algum incidente desagradável com o público!
Acedi, embora contrariado. O bom nome da minha Académica estava em primeiro lugar.
Entrei no ringue a abarrotar de público, de braço dado com dois dos hoquistas da Académica que, fingindo conversar comigo me iam disfarçadamente amparando, um de cada lado, para eu não me desiquilibrar.
Por ordem do juiz da partida as equipas alinharam no meio do ringue em frente à bancada central e quando o seu apito soou, automaticamente todos os jogadores se perfilaram com os braços estendidos ao longo do corpo, para saudarem a assistência.
Foi nesse exacto momento que, deixando de ter o amparo dos meus colegas, comecei lentamente a deslizar, e cambaleando, ganhei gradualmente maior velocidade em direcção à tabela do campo à minha frente.
Poucos segundos depois estatelei-me contra a vedação, saltando-me stick e caneleiras...
Ainda ouvi um espectador gargalhando, gritar:
- Eh pá os gajos nem sabem andar de patins!
Lá me levantaram e conduziram para a baliza, onde me agachei envergonhado e pedindo aos deuses para que o jogo terminasse depressa.
Joguei a primeira parte toda. Perto do intervalo tinham chegado os outros carros. A mudança de uma roda de um deles que tinha furado, fez atrasar a comitiva.
Sofri apenas cindo golos!
Não sofri mais porque nalguns remates não consegui desviar-me a tempo...
Rui Felício