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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

SONHO DESFEITO

Tinha esperado aquela oportunidade, sem nunca revelar as suas intenções, planeara tudo em segredo, e agora que ela se lhe deparara, não a deixou escapar.
Olhou para ela e não resistiu. Enlaçou-a, cobriu-a, assumiu um ar triunfante, e pensou  consigo mesmo que, finalmente, tinha alcançado os seus desejos dissimulados durante muito tempo.
Pertenciam ambos ao mesmo extracto, completavam-se, mas ela sempre se lhe tinha esgueirado, oculta, sem se mostrar, como enguia escorregadia.
Não que ele lhe fosse indiferente, bem pelo contrário! Achava-o sedutor, bonito, um cavalheiro. Mas receava que a víbora da madrasta, vinda de uma poderosa família que dominava por completo o seu pai, lhe cortasse o desejo que ela também secretamente tinha de se juntar a ele, desfazendo-lhes os planos.
E os seus medos não eram infundados! O idílio só demorou alguns instantes, porque a poderosa madrasta, a manilha de trunfo, desfez-lhes o sonho e apressou-se, com um murro na mesa, a cortar a vasa formada pela Dama de copas e coberta pelo Valete de copas, naquele jogo de sueca.
Rui Felício

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

IN MEMORIAM

Partilhei com o Castanheira uma amizade sincera. Na faculdade e mais tarde na tropa, em Mafra. Era uma figura estranhamente sedutora que corria o périplo das cores do arco-iris, desde a mais esbatida à mais berrante, aproveitando de cada uma delas o sortilégio da fantasia e do sonho.
Antes da aula começar, empoleirava-se no estrado e caricaturava na perfeição os gestos e os tiques dos professores. Do Mota Pinto, do Lobo Xavier, do Carlos Moreira, do Rogério Soares, do Sebastião Cruz. Até do Afonso Queiró!
Sabia de cor e salteado todas as peças de Gil Vicente. Declamava a Eneida em latim, convidando-nos a debater a sua superior perfeição em relação à Odisseia e à Ilíada.
Foi actor no Ateneu de Coimbra, mas recusaram-lhe a entrada no TEUC. Levou uma tareia quando foi assistir, de capa e batina, a um jogo da Académica, empunhando uma bandeira do Sporting. Não porque fosse indefectível do futebol, mas porque era um paladino da liberdade, advogando o direito de ser simultaneamente estudante e sportinguista.
Na catequese tinham-lhe ensinado a rezar. Era avesso à hierarquia eclesiástica, mas orar não tinha mal, dizia ele...
A inveja da sua imaginação delirante, da sua popularidade e da sua cultura levava muitos colegas pseudo intelectuais oriundos de famílias com bolorentos pergaminhos, a catalogá-lo de pária. Que não era!
Nado e criado pobre, o Castanheira era humilde mas não subserviente. Amava a doçura da vida numa alegre manhã de sol. Quando os tostões lho permitiam, de guardanapo ao pescoço, babava-se de antecipado prazer em frente a um corriqueiro e fumegante bife com batatas fritas, na tasca da Tia Rosa na Portela, ensinando Direito aos camponeses que por ali paravam para se amesendarem, comerem uma bucha e beberem uma litrada de tinto ao fim do dia.
A infelicidade não o consumia porque a sua alma pairava em vaporosas nuvens atrás das quais havia de vir um dia o esplendor e a glória que ambicionava. Não que as quisesse para suplantar o seu semelhante, mas para ter o poder de influenciar e quebrar as injustiças do mundo.
Como tantos portugueses, para apressar a vinda do sonhado eldorado, o Castanheira rezava à Nossa Senhora de Fátima e comprava vigésimos de lotaria...
Uma coisa ou outra havia de resultar

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

LAÇOS SAGRADOS

Ia trémula, bela, elegante, de vestido branco. Tentava disfarçar o sal de uma lágrima furtiva com um meio sorriso indefinível.  
A Filipa tinha demorado muito a decidir-se! Ela bem sabia que era um passo daqueles que marcam uma vida, mas agora, vencidas todas as indecisões, caminhava lentamente pela ampla e infindável álea, em passadas cadenciadas, nervosa mas resoluta. Nada a faria recuar!
Apoiava-se no braço do pai, de cabelos grisalhos, elegantemente vestido, que a conduzia e lhe incutia confiança, apertando-lhe firme e suavemente a mão para lhe dar força.
Todos os olhares se dirigiam para ela, acompanhando-a, admirando-lhe o rosto tenso, emocionado, de uma profunda beleza. Ouviam-se comentários sussurrados à sua passagem.
Quando a Filipa viu o José ao fundo do corredor, de fato azul escuro e gravata cinzenta, irrepreensivelmente penteado, à espera que ela se aproximasse, o coração acelerou e chegou a pensar, no último momento, libertar-se do braço do pai e fugir, mas reconheceu que isso seria uma infantilidade. Agora que tudo já estava decidido!
De resto, a Deolinda, sua grande amiga e confidente, tinha-lhe dito que no principio ela ia achar estranha essa radical mudança de vida, mas que depressa se habituaria.
A silhueta elegante daquele belo homem que a aguardava, fazia-lhe disparar os pensamentos mais confusos. Foi àquele homem que dera o seu primeiro beijo, foi com ele que passara momentos de enorme felicidade, de quem foi amiga, namorada, amante, e com quem, pela primeira vez, experimentara os prazeres do amor e da paixão.
Tiveram os seus pequenos arrufos, como qualquer casal de namorados. Por vezes discutiam, é certo, mas diziam-lhe que isso era normal.
O pai libertou-se suavemente do seu braço, beijou-a com ternura e desejou-lhe a maior sorte do mundo na vida que agora iria iniciar, deixando-a ao lado do José.
Ficaram ambos de pé, hirtos, tensos, silenciosos, em frente ao Juiz que os aguardava para decretar o divórcio previamente negociado. Lá fora, a Deolinda esperava pelo José ...
Rui Felicio

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

NA PARAGEM DO AUTOCARRO

Que mulher!
Um corpo escultural, o nariz perfeito, bem desenhado equilibrava o rosto oval, de pele sedosa, onde sobressaiam uns olhos negros, profundos como um lago onde apetecia mergulhar, emoldurado por belas madeixas de cabelos negros.
Da sua boca de lábios carnudos, apetitosos, escapava-se de vez um quand...o um suspiro de impaciência a que se seguia um ligeiro virar da cabeça para me lançar um lânguido olhar e um sorriso que deixava ver duas fiadas de dentes imaculadamente brancos.
As pernas altas, torneadas, em cima de uns sapatos brilhantes de saltos finos, de agulha, davam-lhe a elegância de uma deusa. Por vezes, batia repetidamente com o tacão dos pontiagudos saltos dos sapatos, em sinal de ansiedade e expectativa.
Atrás dela, estático, tenso, na fila da paragem do autocarro, mirava-lhe as generosas curvas do corpo envolto por um vestido leve de seda que quase me deixava ver aquilo que imaginava. Sentia o seu cheiro perfumado, a proximidade e o calor do seu corpo. Retesava-me, contraído e, em vez de um sorriso, devolvia-lhe o olhar com um esgar revelador da ansiedade que também sentia, já indisfarçável.
As palavras que ia alinhavando na minha cabeça para lhe dizer, ficavam bloqueadas, presas na garganta.
Por fim, enchi-me de coragem, venci a minha timidez e disse-lhe:
- Desculpe minha Senhora, o salto do seu sapato em cima do meu pé, está a provocar-me uma dor horrível!

CULPA

Carlos Noronha, fitava a Marcia que, constrangida, de olhos baixos, o ia ouvindo e respondendo com monossílabos e frases curtas às perguntas que ele lhe fazia.
Sentado ao seu lado, Nuno Lemos, amigo dela de há muitos anos, mantinha-se silencioso, evitando interferir no diálogo entre os dois. Ia olhando de soslaio a Marcia, ex-deputada, que ficou conhecida no Parlamento pela sua grande beleza, mais do que pelos dotes oratórios. Por vezes, levantava as sobrancelhas e disfarçava a sua discordância em relação a algumas coisas que ela dizia ao Noronha, mas mantinha um prudente silêncio.
O Noronha apercebia-se da crescente ansiedade que ela denotava e isso incentivava-o a prosseguir, desfiando-lhe argumentos em catadupa e convites à resposta que ele lhe exigia.  Aquele belo homem hipnotizava-a, dominava-a. No íntimo, ela admirava-lhe os magníficos e cativantes olhos castanhos, o cabelo grisalho irrepreensivelmente tratado, o corpo musculado que se lhe adivinhava por baixo da roupa, a voz melíflua mas de uma sedutora e tépida sonoridade.Mas, ao mesmo tempo, sentia-se intimidada, incapaz de reagir, de lhe responder, de argumentar.
A cada palavra do Carlos Noronha, o coração apertava-se-lhe, os suores frios inundavam-lhe as costas, o peito, o corpo todo. As palpitações estremeciam-na, sentia as mãos húmidas, escorregadias. Quase não conseguia articular uma frase e quando o tentava fazer, as palavras saiam-lhe arrastadas, sincopadas, roucas, arranhando-lhe a garganta seca.
Assim estiveram os três, durante mais de duas horas, sentados naquela sala, até que finalmente o Carlos Noronha, Juiz de Instrução, se voltou para o Nuno Lemos e disse-lhe:
- Sr. Dr., a sua Cliente Marcia Rodrigues ficará a aguardar julgamento com termo de identidade e residência. Vou deduzir-lhe acusação de prática do crime de tráfico de influências.
 Rui Felicio