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quinta-feira, 17 de março de 2011

VOYEURISMO

A Lurdes nasceu nas Torres do Mondego no seio de uma pobre família. Era a mais nova de um rancho de filhos que o Joaquim Vinagre e a mulher ia fazendo uns atrás dos outros. Do cultivo de uma pequena leira num íngreme cabouco perto do rio, o Vinagre mourejava ao sol e à chuva, no arroteio da terra, para tirar umas couves, uns feijões verdes, algumas batatas e nabos com que faziam o caldo ralo para ir enganando a fome da filharada.

Tinha a Lurdes os seus 7 anos, foi com o seu pai a casa do Senhor Teodósio, o homem rico da terra.  Quieta em cima das pernas semelhantes a dois finos caniços, coçava o cabelo encaracolado muito preto que lhe emoldurava a carita chupada de onde sobressaiam dois olhos negros assustados, como os de uma gazela que sente, próximo, o cheiro do leopardo.

Fitava o dono da Quinta do Caneiro e o seu pai, que contorcia o chapéu nas mãos nervosas e que pedia para ele a aceitar como criada na sua casa, porque já não conseguia arranjar comida para alimentar tanta gente.
Ali cresceu, sem nunca ter ido à escola, arrumando a casa, fazendo as camas, ajudando na cozinha, despejando pela manhã, na fossa, os penicos cheios que ia buscar a cada quarto.
O seu corpo, antes franzino, começou a ganhar formas, as cores animavam-lhe o rosto, a boca de carmim despertava desejos aos rapazes da terra. Aos dezasseis anos era uma bela mulher, de grandes olhos pretos, apaixonada em segredo pelo Luis, filho do patrão, que andava a estudar em Coimbra. Era um rapaz forte, musculoso, bonito, que trespassava as raparigas da aldeia com os seus olhos azuis.
Naquele domingo, a seguir aos afazeres matinais, a Lurdes preparava-se para ir à missa, como de costume, com a D. Alzira mulher do dono da Quinta.
Da gaveta da cómoda carcomida pelo caruncho, no seu acanhado quarto, a Lurdes sacou a roupa domingueira que precisava. Uma blusa bordada no peito, um saiote branco debruado a renda, uma saia plissada de xadrez. Poisou tudo em cima da cadeira. Fitou-se em frente ao espelho antes de se lavar no alguidar de esmalte onde previamente tinha despejado um jarro de água morna. Foi deixando cair a roupa lentamente sem nunca deixar de se mirar no espelho. Deslumbrante na sua nudez virginal, olhava a pele rija, amorenada, firme, voluptuosa, que vestia as carnes torneadas do seu corpo. Duas pétalas de rosa negra arrebitavam-se-lhe no peito, erécteis, simétricas, tentadoras...
Chapinhou na água morna, onde embebeu um pano grosso e passou-o, a escorrer, no rosto, nos sovacos, nos seios, com o pensamento absorto no Luis, que dormia no quarto ao lado.
Assustou-se, quando, espantada, reparou num olho azul num buraco disfarçadamente aberto ao lado do espelho, no tabique de madeira que servia de parede divisória entre os quartos.
Tapou-se à pressa e refugiou-se num canto do quarto com o coração a bater desenfreadamente. Nunca contou isto a ninguém. Fingiu que não tinha dado por nada.
A partir de então, quem estivesse no quarto do Luis, com atenção, conseguiria ver um grande olho preto a espreitar pelo mesmo buraco do tabique.

1 comentário :

  1. Ficamos sem saber se aqueles olhos negros alguma vez se encontraram com os olhos azuis, sem tabiques pelo meio...

    É o chamado "final em aberto" que o autor deixa a cargo da imaginação do leitor.

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