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quarta-feira, 22 de junho de 2011

VINDICTA

Gostei dela desde que a conheci, há já tantos anos!
Foi ao longo da vida a minha inseparável companheira, a minha confidente. Conhece todos os meus segredos, os meus anseios, os meus projectos, sempre disponível para me ajudar na resolução dos mais intrincados problemas. Sem um queixume, sem um reparo...
Partilhei com ela os momentos de felicidade que a vida me proporcionou e nunca me regateou todo o apoio nos momentos menos bons.
Sem que outros nisso reparassem, passei horas infindas a deslizar os meus dedos no seu corpo elegante que, em resposta e às ocultas, se aconchegava a mim tornando-nos num só ser, num destino comum. Mesmo quando alguma contrariedade se apoderava de mim, nunca descarreguei nela a minha raiva. Pelo contrário!
Todavia, nunca deixámos transparecer a intimidade que nos ligava! Foi uma relação espúria, que sempre procurámos esconder. Protegemos ferreamente, dos olhos dos outros, a nossa privacidade, o nosso segredo. Todos achavam que a proximidade e o conluio, não ultrapassavam os limites da simples relação profissional.
Contudo, era bem mais do que isso.
Se, no escritório, ela pautava os seus comportamentos por uma exclusiva e eficiente execução do trabalho, quando nos encontrávamos a sós, em minha casa, em inesquecíveis e longas noites de intimidade e de sonho, os assuntos de trabalho eram relegados para segundo plano e discorríamos sobre o amor, sobre a vida, sobre o passado, sobre as perspectivas de futuro...  
Mas tudo tem um fim.
Farta da obscuridade a que a submeti durante anos, cansada de ser a parda sombra de um oculto desejo do protagonismo que, injustamente, nunca lhe concedi, ela decidiu vingar-se e o inesperado aconteceu.
Ao outorgar um importante contrato, numa cerimónia formal de grande solenidade e na presença de respeitadas figuras de topo que o testemunhavam, a minha fiel e antiga caneta de tinta permanente deixou cair propositadamente um grosso jacto de tinta azul que se espalhou por cima da página final do contrato, esborratando a assinatura que eu acabara de fazer.
Rui Felício

7 comentários :

  1. Agora que já estava a aguar os olhos enternecidos para a secreta paixão do Rui Felício, finalmente revelada num súbito arrojo dum dia ventoso, eis senão quando me sinto profundamente ludibriada com tão inusitado final imprevisível!...

    Eu, carente de escutar estórias de amor puro, já tinha enfiado a minha face nas mãos em concha e revirado os olhos para o tecto numa expectativa de tragédia eminente, para poder chorar um pouco de emoção!...

    Mas, mais uma vez, o Rui Felício "fintou-me" (desculpe a terminologia popular), mas lhe garanto que esta foi a última!...

    Se a protagonista não tivesse sido a caneta, mas uma Mulher, teria sido uma belíssima estória de amor raro...Mas acredito também que se possa ter uma relação de afecto, de amor até, com um objecto de estima como a sua própria caneta por todos os momentos que descreveu tão bem!

    Felicito-o pela escrita, a imaginação e o sentido de humor sempre presente!

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    1. Obrigado minha doce e deconhecida interlocutora, pelas suas sempre amáveis palavras.
      Nesta fria e leda madrugada é um gosto encontrá-la por aqui.
      O amor é um sentimento demasiado sério e intimo para ser revelado publicamente em escritos tão prosaicos como os meus...
      Mas tentarei fazer-lhe a vontade um dia destes...

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  2. Prosaicos os seus escritos, Rui Felício?! Não se apouque dessa maneira, que o não merece!
    A desconhecida interlocutora, que quer manter esta aura de mistério sempre vivificante e apetecível - mais do que a monótona realidade revelada - fica a aguardar a sua confissão real (ou sonho inventado, tanto faz!) de um amor íntimo e sem surpresas finais de mágico, que tanto gosta de ser!...Sem canetas a saírem das mangas...
    Cá aguardo a girândola prometida da sua imaginação!E muito lhe agradeço o aceder à minha vontade.

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  3. Achei o meu comentário prosaico e removiu-o.
    Mas não posso deixar de considerar que o teu amor e reconhecimento pela caneta,companheira de muito anos de labor e de escrita,são sintomáticos de um Rui afectuoso e amigo!
    Estes sentimentos e a criatividade são elementos que integram a tua personalidade esperando que nunca os renegues....A doçura é intrínsica em ti,companheiro do BNM,Coimbra!

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  4. E a dada altura pensei que falasses da máquina de escrever...

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  5. A máquina de escrever não se consegue aconchegar no bolso do casaco junto ao peito, junto ao coração...
    A caneta é mais intima.

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