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terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A SENHORA FIDALGA


Desconhecia-se-lhe a genealogia, mas o seu porte altivo, raiando às vezes a sobranceria, fazia com que os camponeses se desbarretassem e se curvassem à sua passagem, cumprimentando-a reverentemente  e apelidando-a de Senhora Fidalga.
Depois de lhe terem morrido os pais em anos sucessivos, vivia sozinha no enorme casarão apalaçado, fronteiro ao Mondego, antes de se chegar à Portela, rodeado pela quinta cheia de pomares, bungavilias, madressilvas  e um extenso vinhedo. Solteira, com quarenta anos feitos há pouco, nunca constou que se tivesse enleado nos amores de algum namorado ou amante.
Caminhou pelo corredor, atravessou o salão de jantar, aproximou-se da gaiola pendurada junto a uma janela, meteu a mão pela frincha da grade entreaberta e pegou no minúsculo canário que afagou docemente. Repetindo uma rotina diária, falou com ele, chamou-lhe meu bijou, enfiou-o entre os seios e foi até ao varandim, ainda lambido pelos derradeiros raios de sol do crepúsculo.
Chamou o capataz que, por baixo, alinhava as ferramentas agrícolas que o pessoal lhe vinha entregando no dealbar de mais um dia de labuta no campo.
- Faça Vossa Senhoria o favor de dizer, Senhora Fidalga, respondeu o Francisco olhando para cima.
A atitude submissa do Francisco contrastava com o seu corpo possante, entroncado, musculoso, de homem jovem de trinta e poucos anos, bem parecido, nascido e criado na quinta onde também já tinham servido os seus pais enquanto foram vivos.
- Vem cá acima e traz uma mão cheia de aveia para dares de comer ao canário.
Passado um bocado, o Francisco bateu à porta da sala pedindo licença para entrar, trazendo na mão fechada a comida para o pássaro. Dirigiu-se à gaiola e, admirado, viu que estava vazia.
A fidalga, de olhos mortiços como ele nunca antes tinha visto, meio deitada no longo sofá, deslizou devagar a alva mão pelo veludo vermelho e macio do cadeirão e, em voz cava, disse ao Francisco:
- Anda cá, homem! O bijou está aqui!
Atónito, o Francisco viu-a abrir o generoso decote, entrevendo lá dentro as penas amareladas do pássaro que se espanejava, irrequieto, entre as fartas carnes da Senhora Fidalga.
- Estás à espera de quê, homem? Vá, traz cá a comida depressa, que o meu bijou está esfomeado.

Desde então, os camponeses que trabalhavam na quinta comentavam entre eles, à boca pequena:
- O raio do canário anda gordo! Pudera! O Sr. Francisco dá-lhe de comer várias vezes ao dia…

Rui Felício