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domingo, 5 de agosto de 2012

AS PALAVRAS QUE ELE NUNCA DISSE…




Queimavam-lhe a boca, afloravam-lhe aos lábios, mas no último instante retraía-se, engolia-as. Mil vezes as tinha ensaiado, outras tantas as tinha ocultado. Tímido, perdia-se em conjecturas,  adiava sempre o momento de as proferir, enganando-se a si próprio sobre as circunstâncias ideais para o fazer. Inseguro, receava que, ao dizê-las, fosse alvo do escárnio daquela a quem as queria oferecer. Desconfiava das certezas aparentes que todos os sinais lhe indiciavam e que o aconselhavam a decidir-se. Porque lhe tinham ensinado que a certeza absoluta depende da verificação de todas as premissas como hipótese condicional.  Bastaria o antagonismo de uma única premissa desconhecida dele, para que a certeza absoluta aparente, que os indícios lhe pareciam garantir, se desvanecesse.
Os anos passaram. Muitos, muitos anos…
Essa aflitiva obsessão foi-se esbatendo com o tempo, gravada num lugar remoto do cérebro, de onde cada vez mais raramente saía. Por instantes breves, como fogacho etéreo, incaracterístico, suave, rápido, como página de um livro que teimosamente se abre sempre nessa mesma folha.
Questionava-se, sempre que isso acontecia, sobre se algum dia as devia ter dito. A razão dizia-lhe que tinha feito bem em as ocultar, o coração dizia-lhe o contrário. A realidade mostrava-lhe que o tempo já tudo tinha curado, que não era altura de manter tais recordações.
Nunca mais se tinham encontrado. Nada sabiam da vida um do outro. Décadas de separação eram o cimento que fechava as suas vidas como túmulos.
Mas inesperadamente encontraram-se.
Ele ficou a saber então que ela todos os dias tinha esperado por essas palavras.
Mas não era agora o momento para serem ditas. Tornavam-se desnecessárias…
Porque, afinal, ambos as conheciam. Desde sempre!

Rui Felicio

9 comentários :

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. O tempo nem sempre cura!
    E existem momentos na vida em que as palavras por uma razão ou outra, serão omitidas, nem que para isso se tenha que viver com elas atravessadas uma vida inteira!
    Mas para eles, palavras para quê, se os dois,as tiveram sempre guardadas no coração, quem sabe na esperança e num desejo secreto, de um dia as poderem dizer um ao outro!?

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  3. Passei hoje por aqui numa espiadela à sua escrita, sempre do meu agrado, Rui Felício, e deparei-me com um magnífico texto dum suave romantismo! Dum cariz diferente dos outros com que nos vai deliciando, este tocou-me especialmente como mulher, a quem a grandeza de um grande amor sempre mexe com os seus sentimentos. Poucos são os abençoados pela sua nobreza e exaltação e muitas vezes não é revelado por timidez, medo, receios vários, num silêncio de palavras só transmitido pelos olhos ou em monossílabos assintomáticos, que não deixam passar a grande revelação! É o mais grandioso de todos os sentimentos e por ele, além da Liberdade, se dá a própria Vida!
    Permita-me, querido amigo, citar o conhecido poema do nosso Pessoa:

    O Amor

    O amor, quando se revela,
    Não se sabe revelar.
    Sabe bem olhar p'ra ela,
    Mas não lhe sabe falar.

    Quem quer dizer o que sente
    Não sabe o que há de dizer.
    Fala: parece que mente
    Cala: parece esquecer

    Ah, mas se ela adivinhasse,
    Se pudesse ouvir o olhar,
    E se um olhar lhe bastasse
    Pr'a saber que a estão a amar!

    Mas quem sente muito, cala;
    Quem quer dizer quanto sente
    Fica sem alma nem fala,
    Fica só, inteiramente!

    Mas se isto puder contar-lhe
    O que não lhe ouso contar,
    Já não terei que falar-lhe
    Porque lhe estou a falar...

    (Fernando Pessoa)

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  4. Um belo texto. Fico a pensar se já não aconteceu o mesmo com todos nós!!!…
    Hoje sei que é preferível falar com o coração, mesmo que a razão nos diga que não!
    Uma simples frase pode alterar radicalmente a nossa vida!...

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  5. Quantas vezes falo demais, mas quantas vezes deixei tanto por dizer....e sempre, ou quase sempre, o mais importante e sentido

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  6. Como sempre, gostei muito deste teu texto, Rui. Tinha saudades de te ler. Obrigada. É assim, que se deve viver. O Alf, estava agora de saída, para Lisboa, com destino a Paris, amanhã, mas telefonei-lhe, porque ele comentou "gosto", numa frase, que há poucas horas, me saíu repentinamente e que sinto verdadeiramente. Está na minha cronologia. Beijos.

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  7. Bom dia, mano!
    " Que fizeste das palavras?
    Que contas darás tu dessas vogais
    de um azul tão apaziguado?
    E das consoantes, que lhes dirás,
    ardendo entre o fulgor
    das laranjas e o sol dos cavalos?
    Que lhes dirás, quando
    te perguntarem pelas minúsculas
    sementes que te confiaram? "
    Eugénio de Andrade

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