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sexta-feira, 19 de abril de 2013

ALCATRUZES DA VIDA

Pegou no maço de Definitivos, tirou mais um cigarro e acendeu-o.
Como acontecia há várias noites, a insónia vencia-o e assim como as cinzas fatídicas do cigarro se pulverizavam, também as ideias se lhe esfumavam, incapaz de as encadear, de forjar um raciocinio coerente.
Ali do alto do Penedo da Saudade, os olhos espraiavam-se pelo vale do Calhabé, corriam sem se deter pelo estádio municipal, pela igreja de São José, pelo apeadeiro do comboio e quedavam-se no extremo nascente do planalto onde tinha sido plantado, numa geometria irrepreensivel, o casario do Bairro. Era ali que dormia a sua amada, lá para os lados da Rua da Guiné.

Nunca se tinham falado, mas apaixonara-se por ela desde o primeiro dia em que a viu num baile do Greco para onde tinha sido convidado por um colega de faculdade há um mês atrás.






Névoas silenciosas vindas do Mondego e do Pinhal de Marrocos começavam a cobrir lentamente, em farrapos obliquos, as casas do vale deixando aqui e ali a descoberto os fantasmagóricos picos das suas chaminés, como pináculos de jazigos, numa desolação madornal de cemitério, sepultando e escondendo no seu ventre os funcionários, os operários e os camponeses que habitavam aquele plácido e húmido recanto da cidade ainda rural, planificado na bruma.
Mal adivinhava o seu pai, lá longe em Mangualde, que, com sacrificios imensos o mandara estudar em Coimbra para ser doutor, alugando-lhe um quarto numa casa perto do convento das Carmelitas e do Penedo, que o seu filho Pedro, em vez de pegar nos livros, passava as noites a esfumaçar à janela, de coração apaixonado, obstinado naquele bairro.
Ou, melhor dito, numa determinada casa daquele bairro.
Ou, para sermos mais precisos, na janela daquela casa onde dormia o seu amor.

Mal começou a romper a aurora, passou a cara por água, tentando disfarçar as olheiras profundas, penteou-se, vestiu a capa e batina, meteu dois livros debaixo do braço e saiu de casa.
Em vez de se dirigir à Universidade para ir às aulas, desceu a pé pelo Cidral, estugou o passo com a capa a ondular e dirigiu-se até à passagem de nivel. Como de outras vezes, era ali que esperava que ela passasse para ir às aulas do Liceu Feminino onde frequentava o 7º ano.
Nunca antes lhe tinha falado, mas desta vez estava resolvido a abordá-la e a declarar-lhe o seu amor.

Pouco depois, viu-a descer a rampa que vinha da Rua de Angola em direcção ao apeadeiro, acompanhada de outras colegas, numa algazarra juvenil, de gargalhadas e dichotes.
Mas o seu coração baqueou. Num amplexo apertado, um rapaz envolvia a Graça com o braço em redor dos ombros.
Afinal ela já namorava!

Desistiu de lhe dirigir a palavra.
Macambúzio, acabrunhado, com o coração a sangrar de desgosto, virou costas em direcção à paragem do Calhabé para ir apanhar o trolley para a Universidade.






Muitos anos mais tarde, o Dr. Pedro Matias, já médico em Mangualde, viu a Graça entrar-lhe no consultório, pedindo-lhe que a observasse e medicasse. Precisava de se tratar de uma gripe que a vinha apoquentando há uns dias e aproveitara uma diligência no tribunal de Mangualde para ir ao médico.
Era agora advogada em Nelas...

Reconheceu-a, falaram de Coimbra, do Bairro e do Greco.
Receitou-lhe umas aspirinas que é prescrição que nunca falha.
Só então o Pedro ficou a saber que aquele rapaz que a abraçava, naquele tenebroso dia no apeadeiro, era o irmão da Graça que se dirigia para as aulas no D. João III, acompanhando-a até ao Infanta D. Maria.


Rui Felicio

domingo, 7 de abril de 2013

REENCARNAÇÃO

Antes de morrer eu era um céptico.
Até hoje nunca tinha acreditado na teoria da reencarnação.
Também duvidava do aforismo popular que diz que o castigo pode tardar mas a justiça acaba sempre por ser feita.
Contudo, após a minha morte, tudo mudou!

Tinham-me ensinado que, depois de morrer, eu iria à presença de S. Pedro que decidiria sobre o meu eterno destino.
Tinha consciência de que não teria lugar no céu, porque não fui santo enquanto vivi, mas parecia-me que seria injusto ir para o inferno, porque nunca fui nenhum crápula.
O veredicto de S. Pedro só poderia, portanto, ser o purgatório e eu já estava preparado para isso.

Nos momentos de espera na antecâmara celestial, ia remoendo o desejo de vingança sobre o meu sócio Francisco Peres, um malandro que me infernizou a vida e que me roubou descaradamente. Ele continuava vivo e de boa saúde, enquanto eu já estava a contas com o Criador.
Afinal também nisto eu estava enganado!
S. Pedro deu-me uma nova vida para viver e cá estou eu numa nova encarnação, ainda muito jovem, forte, cheio de vida, irrequieto e brincalhão!

Certo dia, vejo aproximarem-se o Francisco Peres e a filha.

Não me reconheceram, claro, mas a filha gostou de mim, não parava de me sorrir, acariciou-me, tentou conquistar as minhas graças.
Ao mesmo tempo o Francisco fechava negócio com o dono da loja de animais onde eu estava à venda dentro de uma gaiola...
O Francisco acabara de satisfazer o desejo da filha que não quis sair da loja sem levar consigo o mais belo cachorrinho que eu sou agora.

Gostei da miúda, mas ao pai dela e meu antigo sócio, vou-lhe rosnar, urinar-lhe nos pés, roer-lhe as calças e morder-lhe a mão sempre que tentar tocar-me...

Rui Felício

DILEMA

Atroz a minha dúvida, insolúvel este dilema!
Chamava-se Tó. Aliás todos se chamam Tó, lá na Quinta. Às fêmeas, adjectivam-nas de parideiras.
Caracterizam-se pela sua inteligência, pela sociabilidade, pelo espírito gregário. Cumprimentam-se por contactos dos narizes, que esfregam uns nos outros, emitindo sons roufenhos ou estridentes de saudação. Reconhecem-se pelo olfacto.
Estabelecem facilmente relações de amizade uns com os outros e são condescendentes e de grande ingenuidade.
Apreciam a harmonia, evitam discussões e repelem ressentimentos.
Recentes estudos, demonstraram que são mais inteligentes que os cães e que conseguem apreender o que os outros estão a pensar quando esfregam os narizes.
Na Quinta onde vivem, na Paiã, nos arrabaldes de Lisboa, está integrada uma Escola Agrícola.
Vivem felizes chafurdando na lama em intermináveis brincadeiras.
Nada que se pareça com as criações pecuárias onde os outros porcos vivem encafuados em iníquos espaços, alimentados à força, para no fim da sua curta e infeliz vida terem como destino inexorável, o matadouro.
Um dia, sob uma chuva intensa, dois homens aproximaram-se, meteram-me a mim e ao meu amigo Tó numa gaiola acanhada, colocaram-na em cima de uma pequena camioneta e dirigiram-se connosco para o edifício da Escola.
Atiraram com a gaiola para cima de um porta-paletes e rebocaram-no ao longo de um frio e húmido corredor até uma grande sala onde já se encontravam alguns homens vestidos com batas brancas.
Um deles, mais velho, parecia ser o professor e os outros os alunos.
Em cima de uma grande mesa de mármore espalhavam-se ossos, restos de carne, órgãos diversos...
Dentro de um armário envidraçado, um esqueleto, com toda a aparência de ser de um porco.
Olhando tal aparato, ficámos assustados, o Tó e eu...
Aquele que devia ser o Professor, disse aos alunos que lhes ia ensinar a esquartejar, a dissecar e a extrair do porco todos os órgãos. Fez-lhes notar que o animal devia ser morto com o mínimo de sofrimento possível, ensinando-lhes que para isso utilizariam um instrumento eléctrico que se lhe descarregaria para o atordoar, espetando-se logo de seguida uma pontiaguda faca no exacto local onde se encontra a veia jugular, para que a morte fosse rápida.
Apesar dos lancinantes gritos do Tó, que estrebuchava e tentava fugir, conseguiram domina-lo e, depois de electrocutado e morto, colocaram-no finalmente em cima da pedra mármore.
Assisti a tudo, agoniado, por trás das grades aramadas da gaiola, até que o meu amigo Tó ficou desfeito em inúmeros pequenos pedaços ensanguentados.
O Professor, no fim, disse que eu, o outro porco, não iria ser igualmente esquartejado porque ele resolvera adiar a aula seguinte com outra turma. Por isso, mandou que me levassem de novo para a Quinta.
Quando cheguei ao meio dos outros porcos, evitei o contacto com eles. Renunciei aos toques dos seus narizes, para que não me adivinhassem o pensamento, afastei-me para um canto...
Devo contar-lhes tudo o que se passou?
Devo transformar a sua habitual alegria em tristeza e revolta?
Ou devo ocultar-lhes a verdade, deixando-os livres e felizes como são?
Mas, para isso, teria que fingir que estou feliz. E não sei se sou capaz...
Este é o meu dilema...
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Rui Felício

quinta-feira, 4 de abril de 2013

PAÍS INVERTIDO

Depois de tantos anos, finalmente passeei por aquela estranha terra que desde há muito queria conhecer.
É o País Invertido onde tudo se passa às avessas, ao contrário daquilo a que preconceituosamente nos quiseram habituar.
E, todavia, tive a sensação de já o conhecer há muito!




 Ali, as pessoas dizem o contrário do que pensam, andam às arrecuas em vez de caminharem em frente, dizem que vão para ali, quando afinal estão a vir de lá. E asseguram-nos que vêm de lá quando saem daqui para lá. Curvam-se quando deviam ter a espinha direita e empertigam-se quando se deviam curvar envergonhadas.
Quando querem dizer-nos algo, afirmam peremptoriamente aquilo que não queriam transmitir-nos.
A história que dizem não nos quererem contar, mas que nos contam, é iniciada pelo fim e vão recuando na descrição até ao prólogo.
Às perguntas que os jornalistas lhes fazem não respondem. Mas respondem àquilo que não lhes foi perguntado.
Os deficientes físicos, em cadeiras de rodas, cedem o seu lugar nas filas do autocarro ou do supermercado aos jovens saudáveis, e estes manifestam e reclamam o seu direito de passar à frente de velhos e deficientes.
Na rua, os ricos pedem esmola aos pobres, e, se puderem, roubam-nos.
Os músicos desafinam os seus instrumentos nos teatros, para uma plateia de surdos que ali vai assistir aos espectáculos. E que bate palmas antes do inicio. Os que compraram lugares nas primeiras filas, sentam-se no galinheiro e vice-versa.
Os filhos educam os pais e obrigam-nos a ir à escola, os assaltantes dão conferências e palestras advogando os princípios basilares da sua conduta moral.
Na escola os estudantes ensinam os professores, disciplinam-nos e avaliam-nos.

Antes das eleições, os políticos votam no Povo. Os que tiverem menos votos, os menos capazes vão para o Governo, com a missão de reduzir o nível de vida da população, de a tornar mendicante, de a obrigar a uma morte precoce. Depois fazem campanha eleitoral, publicam os resultados e marcam eleições.

As mulheres aguardam nervosas no átrio das maternidades que os seus homens dêem à luz na sala de partos.
Os recém nascidos nascem velhos e quando morrerem daqui a 80 ou mais anos serão crianças de tenra idade depois de uma vida regressiva.

 Naquele País Invertido não há corrupção e quando alguém, por vaidade, se declara corrupto é aclamado e elogiado!
As prisões estão a abarrotar de inocentes e os guardas prisionais são os bandidos.
E os Tribunais, quase sempre inactivos e inconsequentes, proferem céleres sentenças laudatórias que servirão de fundamento para a atribuição de comendas e medalhas aos criminosos.

Rui Felicio