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terça-feira, 25 de junho de 2013

TIMIDEZ EM COIMBRA


Viam-se todas as manhãs...
Ele, segurando uma pasta de cabedal, a descer a Av. Sá da Bandeira em direcção à baixa e ela, carteira a tiracolo, a subir a caminho da Praça da República.
O Carlos Marques, elegante, aprumado, bem vestido, era um jovem alto, bonito, bem parecido. Tinha acabado o curso de Direito há um ano, estagiando agora num escritório de advogados da Rua Ferreira Borges. Fazia-o apenas para ganhar tarimba, porque aguardava resposta a um requerimento que fez para ingressar num serviço público adequado à sua formação jurídica, porque era aí que desejava fazer carreira, longe dos holofotes de teatro que considerava ser uma sala de audiências de um tribunal.
Sofria de uma profunda e agoniante timidez, que o fizera passar obscuro pelos bancos da faculdade, fechado em casa às voltas com os livros, longe das folias e da boémia coimbrã. Achava que essa forma de ser o desaconselhava de abraçar a advocacia, profissão para a qual, segundo pensava, não estaria talhado.

A Marilia, moça de olhos vivos, cheia de vida e sorriso cativante, olhava aquele belo rapaz ainda ele vinha longe, sempre à espera de um gesto seu, de um sorriso, algo que lhe mostrasse que também ele reparava nela.
Sentia-se atraída pela sua esbelta figura e estaria pronta a aprofundar o conhecimento com ele, talvez um relacionamento, um namoro até, mas os dias sucediam-se e nada da parte dele o proporcionava.
Por vezes os olhares encontravam-se, mas quando assim sucedia ele desviava propositadamente os olhos, parecendo envergonhado, incomodado, como se tivesse sido apanhado em flagrante delito.

O que a Marilia não sonhava é que o Carlos estava perdidamente apaixonado por ela e que só a timidez e a insegurança o impediam de o manifestar.
Uma noite, na solidão do seu quarto alugado na Rua Tenente Valadim, o Carlos encheu-se de coragem e decidiu escrever um bilhete que de manhã lhe entregaria quando passasse por ela.
Na manhã seguinte, afrouxou o passo sem parar, deu-lhe o papelinho, dobrado em quatro, quase sem olhar para ela e prosseguiu a marcha cabisbaixo, já intimamente arrependido de o ter feito.

Surpreendida a Marilia, desdobrou a bilhete e leu as palavras cuidadosamente desenhadas. Era uma frase simples, mas agradavelmente reveladora: “Gosto muito de si. Desculpe!.”
Olhou para trás mas ele já ia longe. Nem sequer sabia o seu nome, nem onde trabalhava, nada! Especada, ficou a vê-lo desaparecer na curva da Escola Avelar Brotero.
No dia seguinte, a Marilia esperou por ele nas escadas do Teatro Avenida, firmemente disposta a enfrentá-lo.
Quando ele se aproximou, colocou-se ostensivamente à sua frente barrando-lhe o caminho e disse-lhe com um sorriso:
- Obrigada pelo seu bilhetinho de ontem. Quero que saiba que também gosto de si.
Pareceu-lhe ver um ligeiro rubor na face quando ele se atreveu a dizer-lhe:
- Gostava que pudessemos encontrar-nos para nos conhecermos e conversarmos.
- Também gostaria muito, respondeu-lhe a Marilia, mas infelizmente, ainda esta noite, vou para as Termas de São Pedro do Sul e ficarei por lá durante um mês. O meu pai todos anos lá vai fazer tratamento a uma doença de varizes que o apoquenta.
- Combinaremos então quando regressar, se estiver de acordo, propôs-lhe o Carlos, pesaroso, mas esperançado.
- Está bem, respondeu a Marilia. Até daqui a um mês então...
E seguiram cada um para o seu destino. Na atrapalhação do momento, nem ao menos se lembraram de perguntar um ao outro como se chamavam.
--------------
Uns dias depois o Carlos Marques recebeu um oficio do Ministério do Interior, a comunicar-lhe a sua admissão ao serviço a que concorrera.Era uma boa noticia!
Entretanto, em São Pedro do Sul, a Marilia encontrou um antigo colega de escola que não via desde há muitos anos.
Era o Tibúrcio, agora médico a trabalhar nas Termas.
Todos os dias se encontravam e rapidamente a Marilia esqueceu o tal rapaz de Coimbra. Começaram a namorar.
Não era um namoro de férias.
Estavam verdadeiramente apaixonados, a tal ponto que decidiram casar-se o mais brevemente possivel.
Afinal já se conheciam desde crianças e não tinham quaisquer dúvidas sobre a firmeza do seu amor.

O Carlos é que, já no seu novo trabalho, não conseguia deixar de pensar na sua amada.
Contava os dias para o regresso dela a Coimbra, para a ver, para lhe confessar o delirio da sua paixão, já imaginando deleitado os beijos que um dia trocariam quando começassem a namorar.
Vivia ansioso, de coração apertado pela paixão quase doentia que o acometera.
Mas o mês passou, os dias e as semanas foram correndo, e a Marilia nunca mais apareceu pela Av. Sá da Bandeira.
E ele penalizava-se por, estúpidamente, nem sequer lhe ter pedido a morada.
Agora, não fazia a minima ideia de como a encontrar, de como a procurar.


Mal adivinhava o Carlos que ela deixara o emprego e por isso nunca mais passara na avenida como antes. Andava atarefada a tratar dos preparativos para o casamento com o Tibúrcio.

A data foi aprazada, trataram da papelada e, finalmente, no dia da cerimónia, a Marilia e o Tibúrcio foram à Conservatória do Registo Civil para celebrarem o casamento.
Nervosos e irradiando felicidade, os noivos, as testemunhas, os convidados e familiares, entraram no salão de actos da Conservatória.
Esperaram uns minutos e a funcionária informou-os que o Dr. Carlos Marques, Adjunto do Conservador, estava quase a chegar e que seria ele a celebrar o matrimónio.






Rui Felicio

8 comentários :

  1. Voltas e reviravoltas que a vida dá e contadas por ti com envolvimento emocional forte entre os diferentes actores...o final surpreedente,bem à tua maneira,deixa-me de rastos por causa do Carlos.
    Aliei-me totalmente a ele!

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  2. Como a Olinda Rafael, também eu me passei incondicionalmente para o lado do Carlos, até porque me irritou de sobejo que a Marília o tivesse trocado, sem o mínimo de decoro, por um Tibúrcio das Termas de S.Pedro do Sul, cujo nome não prenunciaria nada de bom!...
    As voltas que a vida dá, os encontros e desencontros e os finais das suas histórias sempre perfeitamente imprevisíveis, onde se nota um certo gozo do Rui Felício em ludibriar o leitor com uma rasteirinha satírica, de que mofa como líder que se torna na escrita, conduzindo as personagens para fins inesperados!
    Esta é, afinal, a sua marca d'água, o seu timbre literário, que eu muito aprecio!

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  3. Agradeço a ambas os comentários.
    Não foi inocente a minha escolha do nome do Tibúrcio, arrevesado e estranho, em contraponto ao do Carlos Marques, nome vulgar e pacífico.
    Porque a nossa tendência é quase sempre a defesa dos mais fracos...

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  4. Eu entendi perfeitamente, Rui Felício, a sua intenção específica na escolha de um nome que se colasse à personagem, para realçar a simplicidade do recatado Carlos, cujo intuito teve eco em mim: de imediato deitei uma asa de solidariedade sobre este, esquecendo que Tibúrcio, figura de médico de termas, até podia ser um bom ser humano, com qualidades, cujo nome passasse a ter uma sonoridade mais simpática e induzisse muita clientela a querer para os descendentes a originalidade sonante dele...Mas nós somos muito levados pela emoção e perdemos muitas vezes o sentido crítico que separa o trigo do joio...
    Essencialmente este é um conto dos estranhos desencontros da vida!...

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  5. A mais regular comentadora deste meu quase desconhecido blog, a Maria Mesquita, tem demonstrado em tudo o que escreve um espirito de observação invulgar e uma forma de se expressar clara de quem domina o uso do idioma como poucos.
    Por isso me é tão agradável ler o que escreve.

    Contudo, mantém oculta a sua identidade o que mais espevita a minha curiosidade.
    Quem será?
    Como chegou até esta blog?

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  6. Como cheguei a este Blog, Rui Felício?! Por um espírito curioso e pela magia de uma escrita apelativa, que me conduziu até ela como um rato atrás da flauta de Merlim... Vou deixá-lo bem espevitado de curiosidade, com a minha identidade na sombra, porque nada confere maior fascínio que o mistério das personagens indecifráveis!...Que o diga Hitchcock...
    Importa-se que me esconda de si, na obscuridade dum nome sem história, sem rosto e sem densidade?!
    Um fantasminha deambulante e divertido, quiçá uma freira moderna no silêncio de um convento, uma cantora pimba de unhas de gel, saia coleante e muito parca, incentivada por livreiro utópico e seu incondicional admirador, uma trapezista sem rede e culta de um circo português sem incentivos, uma intelectual insegura ou uma fã em vias de sedução?!...
    Não se assuste, Rui Felício, apenas brinco com o facto e a sua curiosidade também espevita a vontade de me escudar por detrás de uma máscara veneziana...
    Mas não posso deixar de lhe agradecer as suas palavras tão gentis e hiperbolizadas!
    Que as minhas sem rosto não desmereçam as suas tão fluídas e de uma arquitectura literária tão harmoniosa!

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  7. Fico indeciso entre a imagem de uma freira moderna no silêncio de um convento e uma sedutora mulher escondida atrás de uma máscara de Veneza.

    Porque a freira esconde a beleza do corpo por baixo das vestes, mas revela-nos o seu coração através do olhar e a veneziana revela-nos a elegância do corpo mas esconde-nos o olhar que nos permitiria descobrir os seus sentimentos.

    Julgo que adoptarei as duas em simultâneo, consoante a leitura que fizer da atraente escrita da Maria Mesquita e conforme o meu estado de alma no momento em que a ler.

    Jamais a imaginarei uma trapezista. Ainda hoje retenho, horrorizado, a imagem de uma bela mulher que se estatelou do alto da lona de um circo pobre no sobrado da pista.

    Não consigo também idealizá-la a entoar canções pimba, de perna ao léu.

    Admito que seja escritora incentivada por livreiro utópico, mas se assim é, onde poderei ler os seus livros?

    O que sei é que a sua imagem está à frente dos meus olhos, uma espécie de holograma fantasioso, porque não sei dialogar sem ver o meu interlocutor.
    Se ela corresponde à realidade ou não é o que gostaria de saber. Mas conformo-me...

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  8. "Entre les deux" votre coeur balance,Rui Felício, numa oscilação irresoluta entre a virgindade da alva freirinha de olhos expressivos como as do serralho ou a sedutora veneziana fugindo aos seus perscrutadores e indagantes!... Quanto às outras personagens só foram lançadas na ribalta para baralhar as cartas e fazer um jogo pouco crível,é certo, mas uma espécie das "escondidas", para ver se o baralhava...
    Sempre o imaginei alguém que se escuda atrás das palavras e não tem essa premente necessidade de dialogar com o interlocutor! Essa característica faz parte da minha personalidade, mas desta vez decidi arredá-la e entrar numa brincadeira da cabra cega, que espero não o reduza ao conformismo anunciado...

    Tem o meu holograma fantasioso, mas não sabe quem sou, se cultivo com estima o meu bigode farfalhudo, se uso uma permanente frisada nos cabelos,se os pelos das pernas ainda são os da adolescência, se como com a faca no ar e se dou estridentes gargalhadas em lugares públicos!
    Tudo isso eu posso ser, ou...não!

    O mistério adensa-se e garanto-lhe que não me vou apresentar! Lá se iria a magia e a sua curiosidade nunca satisfeita!... Fiquemo-nos - se isso não colidir com a minha presença no seu blog! - apenas por este enigma em que nenhum de nós se conhece e pode apenas imaginar-se, o que confere uma certa aura de inacessibilidade a esta intrusa...

    Mas, creia, sou apenas uma mulher que gosta dos seus escritos, interfere aqui e ali com um certo prazer e gosta de o ir decifrando através do seu magnífico dom da palavra...

    Mas não sou incógnita, o que seria abominável: meu nome é Maria Mesquita!

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