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sexta-feira, 26 de julho de 2013

NO DIA DOS AVÓS...


Desde sempre, a sabedoria dos avós sacia a curiosidade dos netos.
Desde sempre, a imaginação e a utopia dos netos renova e actualiza a experiência dos avós.
Sempre assim foi.
Sempre assim será.

Corria o ano de 2165...


O neto João olhava atentamente o seu sábio avô. A sua curiosidade, como a de todos os jovens, não conhecia limites.
As perguntas atropelavam-se umas às outras.
O velho, pacientemente, ia sintetizando o fulcro da curiosidade juvenil, respondendo-lhe de forma pausada e segura.

 -Sabes João, eles não davam nenhum valor à vida, matavam-se uns aos outros por coisas que nunca conseguimos perceber.
Não sei de onde vieram e acho que ninguém sabe.
Antes deles, muito antes, já nós por cá andávamos...
Eram uma praga, disso não há dúvidas. Não respeitavam nada nem ninguém consideravam-se uma raça superior, desprezavam displicentemente as equilibradas leis da Natureza.
Um dia, criaram um poderoso vírus com o objectivo de o usarem para dominar o mundo, eliminando os seus inimigos.
Disseminaram-no e nem se aperceberam que a própria arma era tão letal e rápida, que os dizimou a todos. Incluindo os seus próprios inventores!

O neto não compreendia porque é que esse vírus que matou essa tal raça, não os afectou a eles também, que ali estavam calmamente a conversar, e nem a nenhum dos outros seus familiares espalhados pelo mundo.

O avô explicou ao neto que aquela raça idiota e arrogante, contrariando a Natureza , se esqueceu que esta tem as suas regras e as suas defesas.
A Natureza protegeu todos aqueles que não pertenciam à tal raça hedionda, criando anti-corpos que repeliam o vírus, protegendo-os...

O João, macaquinho simpático, fitou o velho símio acocorado à sua frente no meio da floresta, e perguntou-lhe:
- Que raça era essa avô?
- A raça humana, completamente extinta... – respondeu o velho símio
    
 
 Rui Felicio

quinta-feira, 25 de julho de 2013

AS PRIMEIRAS LETRAS

 
 
Ia entrar para a primeira classe em Outubro seguinte. Mas desde há uns meses que o meu pai se servia da cartilha maternal de João de Deus, para me ir ensinando as primeiras letras. Como muitos estarão recordados, este método consistia em ensinar às crianças as sonoridades dos fonemas, a importância e a intensidade tónica das vogais na formação das palavras.Começava por inserir na mente do aprendiz a correspondência dos sons com a palavra escrita.Decompunha os vocábulos em sílabas e o professor atraía a atenção da criança pronunciando a sonoridade do fonema ao mesmo tempo que apontava para as letras desenhadas na cartilha e que formavam a sílaba.Desta forma, o aluno aprendia a relacionar o som que o professor executava, com o desenho das letras que lhe correspondiam e que ele apontava.
Mesmo sem ter ido ainda à escola, já conseguia “ler” quase todas as palavras mais simples, embora em muitas delas lhes desconhecesse o verdadeiro significado.
Naquele início de Setembro íamos, a minha mãe, o meu pai e eu, acompanhados por uma grande quantidade de trouxas, malas e maletas, a caminho da Figueira da Foz passar a habitual primeira quinzena de férias numa casa alugada a uma família de pescadores na Ponte do Galante. Era uma aventura inesquecível aquela viagem de combóio que apanhávamos na Estação Velha, depois de o Adelino, nosso vizinho, nos ter até lá transportado no seu táxi, um Citroen arrastadeira que eu considerava um luxo.
Encantavam-me as portas todas a abrirem-se em cada apeadeiro, o silvo da locomotiva, o fumo da fornalha misturado com o vapor da caldeira, os bancos de ripas envernizadas, a fuligem a entrar pelas janelas abertas tisnando-nos a pele mesmo antes de a tostarmos ao sol da praia. Deliciava-me com a azáfama dos passageiros a entrar e a sair nas sucessivas estações onde a cada passo parávamos: Bencanta, Espadaneira, Formoselha e o fim da primeira grande etapa em Alfarelos. O combóio, ali, quedava-se uma boa meia hora para aguardar pelo transbordo de quem vinha de Lisboa com igual destino da cosmopolita praia da Figueira. De rodilha à cabeça, carregadas com um grande alguidar de zinco, várias mulheres cirandavam numa roda viva pela gare da estação, apregoando água fresquinha em pequenas bilhas de barro. Com um prolongado apito o Chefe da Estação dava o sinal da partida. Ouvia-se o ranger de ferros, os corpos dançavam com os solavancos das carruagens a esticarem as engrenagens que as ligavam entre si, as rodas da locomotiva patinavam nos carris luzidios e finalmente o comboio começava a ganhar lentamente velocidade.
Com a entrada de passageiros vindos do sul, a carruagem ficou à pinha. Observava em silêncio a paisagem do Vale do Mondego que ia deslizando lentamente do lado de fora, com as longas várzeas polvilhadas aqui e ali por pequenas casas que pareciam boiar na água. Passámos Verride e depois a bifurcação de Lares e o meu pai procurou explicar-me que os comboios que iam para Lisboa se desviavam ali, apontando-me a linha que ficava à nossa esquerda.
Mais à frente, na Fontela, observei o edifício da estação enquanto o comboio ali esteve parado. Lembrei-me dos ensinamentos da cartilha de João de Deus e soletrei, compenetrado, alto e bom som, as três sílabas que alguém tinha escrito a carvão em letras gordas na parede branca, por cima dos azulejos. Desconhecia-lhe o significado, mas o importante era mostrar que já sabia ler.
Antes que alguém reagisse, repeti orgulhoso a sonora palavra, mais uma ou duas vezes, martelando as silabas e apontando o dedo para a parede da estação. Depois de uns instantes de silêncio e perplexidade, os passageiros que seguiam na carruagem voltaram-se para mim. Uns, circunspectos, abanavam a cabeça, a maioria ria-se às gargalhadas.
A minha mãe chamou-me malcriado. O meu pai disse-me ao ouvido para me calar porque essa palavra era uma asneira.
Mas ninguém me explicou mais nada…
Rui Felicio

sexta-feira, 12 de julho de 2013

TARDE INESQUECÍVEL

      
Como estava combinado, ela foi ter com ele...
Às três da tarde entrou, começou a ficar ansiosa, o coração palpitava mais forte, o sangue rosava-lhe as faces...Enquanto esperava, meio deitada, meio sentada, as mãos dela suavam, as pernas tremiam-lhe, o corpo estremecia-lhe, deixava-a de lábios abertos, sorvendo o ar que lhe faltava, quase sem conseguir respirar.
Quando ele se aproximou e a envolveu, sentiu o bafo quente da sua respiração, olharam-se nos olhos, e ela ficou subitamente tensa, imóvel, com a cabeça revolta por um turbilhão de pensamentos, de medos, de vontades...
A pouco e pouco foi desistindo de resistir e entregou-se nas mãos dele.
Delicada mas firmemente ele envolve-a, invade-a, explora-a e vai-lhe pedindo que nada receie, porque será carinhoso e cuidadoso...
Mesmo assim, ela deixa escapar de vez quando um suave gemido, menos de dor, mais de ansiedade...
Quando ele termina, a paz relaxante fá-la descontrair, o coração gradualmente aquieta-se e minutos depois, recupera o fôlego e levanta-se ainda cambaleante.
Despedem-se, ele abre-lhe a porta, ela sorri-lhe e sai...
Pelo caminho até sua casa ela não consegue deixar de pensar naquela hora de suprema tensão, ainda sente na boca o gosto daqueles momentos inesquecíveis e à noite, deitada sozinha na sua cama, as insónias não lhe permitem tirar da cabeça aquela hora passada na cadeira do dentista.
Rui Felício