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terça-feira, 24 de setembro de 2013

METEORO

Corria o Natal de 1961, annus horribilis do Estado Novo, marcado pela perda de Goa uns dias antes, pela conspiração do quartel de Beja e pelos ataques dos angolanos em Luanda.
Os cientistas não tinham dúvidas!
A tenebrosa notícia era difundida ininterruptamente, entremeada com música clássica, pela televisão e pela rádio, fundamentada com cálculos matemáticos indiscutíveis. Salazar, com ar pungente, falou ao País, recomendando ao grande povo português que soubesse comportar-se com dignidade na hora da tragédia, porque a Pátria saberia renascer das cinzas, mesmo que ficasse orgulhosamente só no mundo, porque este era o castigo divino para aqueles que nos atacavam.
Um meteoro de enormes dimensões iria romper a atmosfera terrestre naquela noite. A energia do choque seria mais de um milhão de vezes superior à que libertara a bomba de Hiroshima! Sabia-se com exactidão o ponto onde ocorreria o impacto, perto do apeadeiro de São José, em Coimbra e era certa a destruição total do planeta Terra. Não havia forma de lhe escapar. Seria indiferente mudar de uma cidade para outra, de um país para outro. Era o apocalipse, o fim do mundo, tal como Nostradamus previra.
Interpretei o calor abafado que estranhamente me inundava o corpo naquela noite fria de Dezembro, como efeito da lenta aproximação incandescente do meteoro, depois da sua entrada elíptica nas altas camadas da atmosfera. A multidão em pânico olhava a bola luminosa que, a cada minuto, ia aumentando de diâmetro no breu da noite.

Ao meu lado, na rua, aquela bonita rapariga que eu só conhecia de uns fugazes encontros nos bailes do Clube Recreativo do Calhabé, tremia de medo sem saber o que fazer, tal como todos nós. Não havia mais do que um superficial conhecimento entre mim e a Ângela, por termos dançado duas ou três vezes, mas a aflição daquele momento aproximava-nos, impelia-nos um para o outro.
Olhámo-nos. Sem necessidade de quaisquer palavras, decidimos aproveitar os últimos momentos de vida. Beijámo-nos longamente, indiferentes aos gritos aterrorizados da multidão. À espera do fim próximo que o calor cada vez mais intenso prenunciava, queimando-nos os corpos, o beijo catalisava as profundezas de todos os sentidos...

Subitamente, acordei sobressaltado, exausto, com o coração a bater desenfreado. Espreitei pelas persianas do meu quarto, e em vez do imaginado cenário de destruição, vi o verde das árvores dos quintais do bairro e a calmaria de um bonito sol de inverno, rebrilhando no orvalho das plantas e das flores . Afinal tudo não passara de um sonho!
Vesti-me à pressa, corri à Fonte da Cheira e bati à porta da Ângela que a abriu sorridente, pegando-me delicadamente na mão. Por algum efeito telepático, também ela, como eu, tinha sonhado com o hipotético meteoro. Também ela tinha sentido o mesmo calor abrasador que eu senti...

Rui Felicio

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

EXÍLIOS



Não perdia uma oportunidade, mesmo que a despropósito, de elucidar os colegas, da sua ascendência aristocrática.
Na Herdade do Azinhal, perto de Portel, dizia-nos, as refeições eram pontualmente tomadas em redor de uma enorme mesa de castanho, no soturno salão do solar, sob a luz de brilhantes lustres, e com o reflexo de avantajados espelhos emoldurados em talha dourada.
O pai, Dom Pedro de Fermões e Cunha, num dos topos da mesa fazia sinal às criadas para começarem a servir, pela ordem hierárquica.
Primeiro a mãe, depois os cinco filhos de que Sá Cunha era o primogénito, a filha mais velha, o genro, a filha mais nova e três crianças que eram os netos que a primeira aportara para o seio do clã.
O ar severo do patriarca não perdoaria menor compostura ou o minimo atraso na chegada à mesa de jantar.
Ao raiar do dia de cada segunda-feira, postava-se ao cimo da escadaria de mármore do Solar e assistia atento à selecção feita pelo capataz, dos jornaleiros que ali se dirigiam na tentativa de serem contratados por uma semana. Normalmente, mais de metade eram recusados, ou por serem velhos, estarem doentes ou parecerem calões.
As regras estavam de antemão estabelecidas. Homens, vinte escudos por dia, mulheres quinze. O trabalho começava ao nascer do sol e acabava ao anoitecer, com duas horas de intervalo para comerem o farnel que cada um trazia de casa e para uma pequena sesta à sombra de um chaparro. O patrão, magnânimo dava o vinho e a água.
Sá Cunha, hospedado numa vivenda no Penedo da Saudade, onde morava um primo afastado, viera para Coimbra cursar Direito, depois de ter acabado o liceu no Colégio Nuno Álvares em Tomar onde esteve interno durante sete anos.
Tudo isto nos contava, com um indisfarçável pedantismo, tentando contudo conquistar-nos as simpatias, asseverando-nos que, apesar da sua ascendência aristocrática, era acérrimo defensor dos direitos dos proletários e que lutaria denodadamente ao lado daqueles que um dia haveriam de derrubar o iníquo regime em que viviamos.
Seis meses depois da incorporação militar em Mafra, desertou e foi viver para Lausanne, ocupando um challet de férias que o seu pai tinha adquirido uma dezena de anos antes. Vivia de uma mesada choruda que a familia lhe mandava para que ele não passasse dificuldades.
Reencontrei-o uns três meses depois do 25 de Abril, numa noite em que eu ia a caminhar na Rua do Coliseu e ouvi alguém chamar-me pelo nome. Virei-me e quase não o reconhecia. De barbas hirsutas, cabelo comprido, vestido com uma camisa grossa de flanela aos quadrados, umas desbotadas calças de ganga e um boné esverdeado com uma estrela na pala, nem parecia o Sá Cunha de fato e camisa branca irreprensivelmente engomada que conhecera em Coimbra.
Ia a entrar no Gambrinus, viu-me, chamou-me e insistiu para irmos lá comer uns lagostins.
Ainda lhe disse que o traje que ele envergava não condizia muito com a maneira de vestir da clientela do Gambrinus, mas retorquiu-me que agora o povo tinha sido libertado e podia aceder aos locais que mais lhe aprouvessem.
Encolhi os ombros, pensando com os meus botões, que o povo podia ser livre mas faltava-lhe o dinheiro para gastar na mais cara marisqueira de Lisboa.
Fiquei a saber que aderira ao MRPP e que em breve concluiria a licenciatura em Direito que interrompera em Coimbra. A Faculdade de Direito de Lisboa, explicou-me, estava democratizada e o MRPP dominava os postos-chave daquela escola, com exames sob fiscalização, controle e decisão final por elementos do Movimento.
Contou-me que desembarcou em Santa Apolónia uma semana depois do 25 de Abril. Como exilado político que era, que sofreu na carne o afastamento da sua Pátria, foi recebido de braços abertos no seio do movimento do proletariado, ocupando um lugar de destaque nos orgãos dirigentes.
Ainda o vi uma ou duas vezes na televisão, de punho cerrado, mas depois perdi-lhe o rasto.
Até que um dia, muitos anos depois, estava eu a olhar o mar, numa esplanada do Mónaco, a bebericar um Campari com laranja, e vejo um vulto a puxar uma cadeira, estender-me a mão sorridente e sentar-se à minha mesa.
Era o Sá Cunha, o mesmo aristocrático dandy do meu tempo de Coimbra, calças beije vincadas, sapatos castanhos brilhantes, um blazer de tweed azul escuro, camisa branca e um lenço de seda a envolver-lhe o pescoço por dentro do colarinho engomado.
- Que fazes aqui, perguntei-lhe, mais para entabular conversa do que porque nisso eu estivesse especialmente interessado.
- Olha pá, quando começaram as ocupações de terras, a Herdade do Azinhal foi transformada numa Unidade Colectiva de Produção. O meu pai morreu de velho e de desgosto.
Achei uma injustiça. Especialmente
pela ingratidão quanto à minha árdua luta pela revolução. Com a Lei Barreto, anos depois, conseguimos retomar a propriedade e receber uma indemnização.
Vendemos a Herdade por um bom dinheiro e com a parte que me coube resolvi vir viver para o Mónaco, onde apliquei o capital, cujos rendimentos são suficientes para ter uma vida sossegada.

Só me ocorreu dizer-lhe:

Fugiste do teu País, em protesto contra o Salazar.
Regressaste com a Revolução e voltaste a fugir do teu País, em protesto contra a Revolução.
Se, como sempre, o dinheiro que nunca precisaste de ganhar, não te vier a faltar, serás sempre um exilado.

Ou, como diria a minha avó, que confundia as palavras homófonas, serás sempre um “asilado”...


Rui Felicio

domingo, 8 de setembro de 2013

AS PEDRAS FALAM E AMAM



Por trás dela, como cenário de fundo de palco, uma enorme e grossa porta de castanho enegrecido pelo tempo, toda ouriçada de cravos de ferro pontiagudos como espinhos em lombo de dinossauro.A seus pés, sentados nos degraus da escadaria da Sé Velha, quatro homens de ar sisudo e compenetrado, envoltos em capas negras, extraiam das guitarras sons melancólicos, belos, arrepiantes, que as paredes das casas em frente devolviam chorosos, carregados de saudade.
Era a primeira vez que, na noite escura e naquele mesmo local por onde passaram os maiores nomes da canção académica, uma mulher cantava o fado de Coimbra, contra a opinião dos puristas da tradição, mas com o aplauso dos que entendem que a canção coimbrã deve evoluir e adaptar-se à sociedade estudantil actual, sem peias ou condicionalismos serôdios e ultrapassados pelo tempo.
O timbre cristalino da sua voz, a forma peculiar da interpretação, a beleza da sua elegante silhueta, enriqueceram a melodia, sem olvidar as vozes de antanho, antes melhorando-a.

Finda a serenata, os ecos das guitarras foram esmorecendo sob o pesado silêncio da noite e ela, no seu vestido negro a esvoaçar ao vento, despedindo-se dos artistas que a acompanharam, optou por se afastar sozinha em direcção à Baixa.
Descalçou-se e de pés nus e os sapatos de salto pendurados na mão, ainda com o peito a arfar de prazer pela romântica noite que acabara de viver, foi descendo pensativa a íngreme calçada do Quebra Costas.
Pisando as mesmas pedras frias por onde caminharam Menano, Goes, Bernardino, Zeca Afonso e tantos outros.

Estacou!
Pareceu-lhe ouvir um sussurro vindo das profundezas da calçada. Tensa, apurou os sentidos e, incrédula, ouviu este diálogo entre o calhau rolado, estranhamente mais tépido que os outros, e que o seu pé nu inexplicavelmente acariciava e o degrau de mármore da casa ao lado.

- Sou de rudes origens, nasci na Serra da Estrela e rolei na correnteza do Mondego até chegar a Coimbra onde me poli até ser colocado nesta calçada.
Por aqui passaram homens e mulheres insignes, ricos e pobres, sérios e desonestos, polícias e estudantes. Mas a nenhum deles jamais me afeiçoei.
Agora, porém, estou perdidamente apaixonado.
E tu meu caro mármore, como aqui vieste parar?

- Vim de Estremoz para embelezar os salões da Universidade, do Episcopado, dos Solares das familias burguesas.
Das sobras, fizeram-me degrau desta casa. Orgulho-me de conviver com a aristocracia, ao contrário de ti, pobre calhau rolado sem pergaminhos.
Mas nós as pedras não temos sentimentos. Não compreendo por isso, como dizes estar apaixonado! E por quem o estarias?”, perguntou-lhe trocista o mármore na sua frieza gélida.
O calhau rolado, ronronou, de coração palpitante, envolto num doce prazer e respondeu-lhe:
- Jamais, até hoje, tive a sensação da aveludada pele de um pé nu carinhoso e sensual a afagar-me, como agora mesmo o sinto.
O pé de uma bela mulher romântica, dona de uma voz incomparável, que ainda há pouco fez resvalar por estas pedras como água limpida e fresca, que só um frio e pedante mármore como tu não consegue sentir.
Sim estou apaixonado por esta jovem e esbelta mulher!

Rui Felicio

 

sábado, 7 de setembro de 2013

TRAGÉDIA


Depois de dias de intenso calor, o dia amanheceu cinzento.
Fraco mas persistente chuvisco matinal molhava a Ericeira...
Estava em casa de pantufas, sonolento, quando uma gritaria me fez vir à porta. Os cães não se calavam....
Era um alvoroço, um grande ruído, um estardalhaço. O barulho das sirenes aguçou a minha curiosidade humana.
Todo o ser humano é curioso, e mais doentiamente o fica quando ouve o buzinar estridente e arrepiante de sirenes...
Ao ouvi-las, toda a gente estica o pescoço, abre a boca de espanto, carrega o sobrolho e interroga-se sobre o que se passou.
E mesmo antes de o saberem todos conjecturam e deitam-se a adivinhar:
- Acho que morreram dois!
- A culpa foi daquele ali!
- Conduzem carregados de álcool, é o que dá!
- O INEM chega sempre tarde...
Quando olhei o espalhafato não foi muito diferente. Grande confusão por ali ia! Havia carros de bombeiros, da polícia, ambulâncias, gruas móveis e até um helicóptero...
Diviso quatro corpos, pernas e braços arrancados, duas cabeças que rolaram, rodas de carros, vários carros sem rodas...
Não conseguia perceber como tudo ali foi parar, como é que aconteceu aquele caos mesmo a dois passos da minha casa.
Havia adultos, crianças, destroços...
Mas pouco a pouco, sob as ordens de uma mulher com visível autoridade, aquela cena ia se desfazendo diante dos meus incrédulos olhos.
As personagens da tragédia estavam a ser retiradas, uma a uma.
Os carros, as gruas, duas ambulâncias e o helicóptero foram recolhidos, os corpos inteiros ou mutilados, todos aleatóriamente empilhados e misturados, como uma salada heterogénea.

Percebi finalmente que as causadoras daquilo tudo, eram duas meninas. Duas inocentes crianças...
Bastou aquela mulher lhes ordenar, para que a Sónia e a Marisa, moradoras na casa ao lado, desligassem as sirenes a pilhas e atirassem de rosto franzido, os carros, as cabeças e braços dos bonecos, tudo para dentro do enorme balde de plástico onde costumam guardar os seus brinquedos.

Era a sua mãe que lhes mandou pararem com a brincadeira e com o chinfrim...

Rui Felicio

terça-feira, 3 de setembro de 2013

NA ALDEIA...

 
A noite caiu, ainda a Ti Amélia Pataqueira, antes de regressar a casa, arrumava a enxada no pequeno casebre de madeira onde guardou os apetrechos com que tinha estado todo o dia a amanhar a horta da pequena leira que possuía, paredes meias com o cemitério das Torres do Mondego.
Correu o ferrolho e deu a volta à enorme chave, que rangeu no buraco da fechadura ferrugenta. De todas as vezes se lhe arrepiava a pele quando ouvia aquele som a cortar o silêncio do local, como se receasse acordar os mortos do outro lado do muro. Encaminhou-se para a azinhaga íngreme de calhau rolado, polido pelos anos, em direcção à aldeia, lá em baixo. Passou em frente ao portão do cemitério, encimado por dois enormes anjos de pedra ali postados como sentinelas e guardiões do campo sagrado onde jaziam aqueles que a morte já tinha levado e que ela bem conhecera em vida.
Benzeu-se,  arremedou uma rápida genuflexão, olhou de soslaio as silhuetas das campas que o portão de ferro forjado e a claridade das estrelas deixavam entrever e aprestou-se para começar a descer a ladeira.De súbito estacou, tensa, rígida, as mãos enclavinhadas no cesto de verga onde transportara o farnel, com o coração em cavas, rápidas e violentas batidas. De dentro do cemitério, tinha ouvido um som esfusiante, parecido com o barulho do gasómetro da sua casa, quando lhe chegava o fósforo para o acender.
Virou a cabeça e viu uma luz azulada a subir da campa do Ti Zé França, que falecera há pouco mais de um mês.Desatou a correr pela quelha abaixo, gemendo de medo. Quando olhava para trás, via aquela luz azulada, aquele fantasma que a perseguia.
Já cá em baixo, entrou de rompante na taberna do Zé Brasileiro, onde alguns homens da aldeia jogavam às cartas em redor de uma carcomida mesa de madeira.
Aos olhos apavorados da Ti Amélia, e à sua respiração ofegante, corresponderam os homens da taberna com um pesado e inquisitivo silêncio.
Recobrado o fôlego, tartamudeou que a alma do Zé França vinha atrás dela!  
   
A Ti Amélia Pataqueira nunca tinha ouvido falar de fogos fátuos. Muito menos imaginava que são provocados pelos gases provenientes da decomposição da matéria orgânica que entram em combustão quando em contacto com o oxigénio do ar.
Nem tão pouco sabia que a deslocação do ar que a sua louca correria provocara, arrastara atrás de si a chama dessa combustão.
 
Rui Felício