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sábado, 30 de novembro de 2013

VELHICE

Noutros tempos, era requisitado, disputado até, numa pomposa cerimónia, num funeral, numa festa, num casamento, numa comemoração solene, tanto por grandes senhores, como por ilustres damas, ou por frescas, joviais e apetitosas donzelas.

Do mais poderoso ao mais humilde, todos consideravam indispensável a sua companhia em qualquer lugar, debaixo da mais impiedosa intempérie ou sob um sol tórrido. Gabavam-lhe as vestes acetinadas, de padrões modernos, escolhidas com gosto, sempre impecavelmente vincadas. Admiravam-lhe a elegância e a firmeza do corpo, a sobriedade e recato da sua presença e do seu trato, a simpatia e disponibilidade para servir os outros.  Percebia que todos tinham até um certo orgulho em tê-lo junto deles.
Não se envaidecia por isso. A sua natureza simples e humilde, não conhecia a vaidade, nem o preconceito, nem o ódio. Pelo contrário, tinha um espírito verdadeiro democrático, era igualmente prestável e educado para com os pobres, os ricos e os remediados, fossem homens, mulheres, crianças ou jovens.

Com o passar dos anos, foi gradualmente perdendo os favores dos mais poderosos, sofrendo calado, a petulância dos novos ricos, e sentindo o desprezo daqueles a quem a vida oprimia e que não se dispunham já a dedicar-lhe a atenção a que antes o tinham habituado.
Já ninguém reparava nele, esquecendo-o como se não existisse, abandonando-o às suas memórias. Chegavam a virar-lhe a cara para não terem que suportar a sua presença, de que chegavam a sentir vergonha. Entristecia-se e amargurava-se, sem um queixume, por causa dos risos de chacota da juventude que, cruelmente, às vezes o invectivava, chamando-lhe velho, desactualizado, fora do seu tempo, quase inútil.
Como se a velhice fosse um estigma, conjecturava ele… Como se ele já não tivesse sido também jovem, bonito, adulado, moderno, como agora eram os que o enxovalhavam.
Sofria de artrose que lhe fora deformando o corpo. O vestuário antigamente elogiado e olhado com espanto e mesmo invejado por todos, estava agora amarrotado, com alguns rasgões aqui e ali, que ele procurava disfarçar com remendos toscos que almas caridosas lhe costuravam.

No hospital, pediu que o consultassem e que lhe receitassem algo para combater a doença que lhe ia paulatina e inexoravelmente entortando as articulações, e que lhe impedia os movimentos mais ligeiros, sem um ranger doloroso.
Não lhe disseram cara a cara, mas veio a saber que, no hospital, decidiram que não se justificava, do ponto de vista económico, atendendo à sua idade, e à crise que atravessamos, fazerem-lhe os dispendiosos tratamentos de que carecia. E que bem sabiam que não o curariam, apenas lhe aliviariam a doença…
Tinha sido belo quando era jovem. Agora, com as varetas enferrujadas, duas delas partidas e atadas com arames, o velho guarda-chuva jazia abandonado, forçadamente conformado, no estertor da vida, junto ao Ecoponto do hospital, à espera de ser levado para a lixeira…

Rui Felicio

2 comentários :

  1. Ai Rui li o texto emocionada,com lágrimas a caírem pela cara...
    É verdade dada a vulnerabilidade do momento além da minha própria velhice.
    Tratava-se de um guarda-chuva quando cheguei ao final.
    A metáfora está suprema e por isso continuo triste.

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  2. Obrigado Olinda.
    Nem sempre se consegue aliviar a realidade mesmo quando se tenta encapotá-la com uma metáfora...

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